UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR Artes e Letras Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) João André Calado Bravo Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Design Multimédia (2º ciclo de estudos) Orientadora: Prof. Doutora Sara Velez Estêvão Covilhã, outubro de 2018 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) ii Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) iii Agradecimentos “Innovation starts with a story about the future.” Bland & Westlake A todos aqueles que me acompanharam ao longo desta odisseia, quero deixar o meu mais sincero agradecimento. À minha orientadora Sara Velez, que tantas vezes respondeu a mensagens, e-mails e chamadas a horas desapropriadas, que me acalmou em alturas em que estava desesperado e que me aconselhou sabiamente, não só na construção desta dissertação como também nos caminhos a percorrer após ela. À minha namorada que apesar de não perceber nada do tema se demonstrava (às vezes) interessada, pelas palavras de carinho e de assertividade, pelo auxílio incansável prestado na dissertação, pelos almoços e jantares que me faziam esquecer de tudo o resto. À minha família. Ao meu pai, o meu melhor amigo, que apesar de chegar extenuado de mais um dia de trabalho, tinha sempre disponibilidade de me ouvir. Pela companhia inestimável nos dias de pesca que se assumiam como terapia, pelas palavras de apreço, pela força que me dava, por tudo. À minha querida mãezinha que, independentemente de estar a escrever a dissertação ou não, me pedia para estender a roupa, porque afinal de contas a vida não era só isto. A ela, que tantas vezes me dizia que “mesmo quando as tripas estão cá fora, voltamo- las a meter para dentro, cosemos e seguimentos em frente; choramos, estrebuchamos e concentramo-nos”. O meu maior agradecimento a eles. À minha irmã Filipa pelas (poucas) mas boas palavras sobre este trabalho e pelos almoços que me fazia quando sabia que andava atrapalhado. À minha irmã mais pequenita que, mesmo sem perceber bem no que consistia uma dissertação, percebia que o mano não andava bem e por isso o abraçava e perguntava se queira ajuda. Obrigado às minhas meninas. Ao Magueijo pelas conversas exploratórias e especulativas sobre tudo e mais alguma coisa. Dedico este trabalho a todos vós e principalmente a mim, que sempre duvidei da sua conclusão. Obrigado. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) iv Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) v Resumo Alicerçada nos ideais reflexivos, cético e críticos inerentes à teoria crítica, o design durante os anos 1956 e 1970, adotou uma postura que fosse capaz de reivindicar a sua autodeterminação cognitiva e liberdade criativa. Estas pretensões foram impulsionadas pelas premissas neo-construtivistas de Bruno Munari que serviram de base para os designers ambicionarem que esta área fosse contemplada como um veículo de modificação social. Desta pretensão, surgem os ideais e o termo “design crítico” cunhado por Anthony Dunne na sua obra Hertzian Tales (2005) em que se verifica a sua vontade de transformar o design num verdadeiro veículo de reflexão social. A evolução inerente ao design crítico, culmina na utilização de especulações sobre o futuro e desta mutação surge o design especulativo. Tendo como base ideológica as reivindicações de conferir ao design um papel muito mais preponderante na esfera social do que aquele que lhe era atribuído, este tipo de design fez espoletar críticas noutras áreas, como é o caso do design associativo como crítica ao design industrial, o design discursivo como tentativa de comunicar através do design e o design fiction como uma área que colocasse em prática as pretensões do design crítico e especulativo sob um fundo de ficção científica. Apesar de aparentarem algumas especificidades, todas estas áreas partem da mesma base ideológica que preza pela utilização do design como um verdadeiro catalisador de reflexão social, em que as suas práticas de prospectivação podem conduzir o público a determinarem o que pretendem do futuro. Partindo sempre do presente desenvolvimento científico e tecnológico, a aplicação do exercício crítico e especulativo no design é caracterizado pela materialização de presentes alternativos ou possíveis futuros, como forma de cativar a atenção do público para uma temática que merecesse ser submetida a uma reflexão pública antes de ser disseminada. Recorrendo-se à análise de projetos de design especulativo e de dois episódios da série antológica Black Mirror, o objetivo principal desta dissertação rege-se pela clarificação dos conceitos e práticas inerentes ao design especulativo e pela forma como as suas premissas podem contribuir para dar respostas a problemas que residem no contexto mundano. Palavras-chave Design, design especulativo, design crítico, design como catalisador, Black Mirror. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) vi Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) vii Abstract Based on the reflective, sceptical and critical ideals inherent in critical theory, design during 1956 and 1970, adopted a stance that was capable of claiming its cognitive self-determination and creative freedom. These pretensions were boosted by the neo-constructivist premises of Bruno Munari that, providing a base for the designers, they could aspire to consider design as a vehicle of social modification. From this pretension, the ideals and the term "critical design", coined by Anthony Dunne in his book Hertzian Tales (2005) emerge, in which there is a desire to transform design into a true vehicle for social reflection. The evolution inherent in critical design culminates in the use of speculations about the future and from this mutation speculative design pops up. Having as an ideological basis the claims of giving design a much more prominent role in the social sphere than that attributed to it, this type of design has triggered criticism in other areas of design, as is the case of associative design as a critique to industrial design, discursive design as an attempt to communicate through design and design fiction as an area that put into practice the pretensions of critical and speculative design under a background of science fiction. Despite appearing to be specific, all these areas start from the same ideological base that values the use of design as a true catalyst for social reflection, in which its foresight practices can lead the public to determine what they want in the future. Always starting from the present scientific and technological development, the application of the critical and speculative exercise in design is characterized by the materialization of alternative or possible future, as a way of capturing public attention to a theme that deserves to be submitted to public reflection before disseminated. Drawing on the analysis of speculative design projects and two episodes of the Black Mirror anthology series, the main objective of this dissertation is to clarify the concepts and practices essential in speculative design and the way in which its premises can contribute to give answers to problems that reside in the mundane context. Keywords Design, speculative design, critique, design as catalyst, Black Mirror. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) viii Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) ix Índice Introdução 1 Capítulo 1. Design, teoria crítica e design crítico: Conceitos e Características 5 1.1 Design- Conceitos, definições e abordagens 5 1.2 Teoria crítica e design crítico 7 1.3 Design Crítico 11 Capítulo 2. Design Especulativo – Um conceito polissémico 21 2.1 Design Especulativo 22 2.2 Design Associativo 29 2.3 Design Discursivo 31 2.4 Design Fiction 36 2.5 Convergência e Divergência entre Conceitos 39 Capitulo 3. Estado da Arte e Aplicação da Prática Especulativa em Design 43 3.1 Análise e Categorização de projetos de design crítico 47 3.1.1 United Micro Kingdoms 47 3.1.2 Foragers 56 3.1.3 Not Yet Heard 59 3.1.4 Teacher of Algorithms 62 Capitulo 4. Black Mirror: uma série de Design Fiction ou de Design Especulativo? 71 4.1 White Christmas 73 4.1.1 Explicação da temática do episódio e áreas envolventes 73 4.1.2 Características do exercício especulativo no episódio 76 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) x Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xi 4.2 Nosedive 80 4.2.1 Explicação da temática do episódio e áreas envolventes 80 4.2.2 Características do exercício especulativo no episódio 82 4.3 Justificação da escolha dos episódios e Categorização 100 Conclusão 104 Referências Bibliográficas 108 Anexos 116 Anexo 1. Tipologia e metodologia do Design Practice 118 Anexo 2. Critical Design Practice 120 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xii Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xiii Lista de Figuras Figura 1 – Projeto “Sella Stool with Bicycle Saddle”. 9 Figura 2 - Projeto "Faraday Chair" realizado de 1994 a 1997. 14 Figura 3 - Projeto "Personal Instrument". 15 Figura 4 - Projeto "Allien Staff". 16 Figura 5 - Projeto de ilustração em sacos de compras da marca Camper. 18 Figura 6 - Projeto "Statistical Clock" de Dunne & Raby em parceria com Anastassiades. 18 Figura 7 - Manifesto A/B. 23 Figura 8 - PPPP: Cone do Futuro Preferível. 24 Figura 9 - Caixão Afterlife. 28 Figura 10 – Modelo Diamante Duplo: “Prática do Deisgn Especulativo mapeado pelo processo de design tradicional”. 30 Figura 11 - Projeto "100 Chair in 100 Days" de Martino Gamper. 30 Figura 12 - Projeto "100 Chairs in 100 Days" de Martino Gamper. 30 Figura 13 - Design Tradicional vs Design Especulativo. 32 Figura 14 – “Tipos de produtos discursivos”. 32 Figura 15 – “Movimentos do Design”. 33 Figura 16 - Mapa ilustrativo da SCD practice. 35 Figura 17 - Projeto "Blackbox" criado em 2017 por Tiberio & Imbesi. 38 Figura 18 - Excerto da coluna "B" do manifesto "A/B" de Dunne & Raby. 44 Figura 19 - "Political Chart". 48 Figura 20 - "Digicars", CGI por Tommaso Lanza. 48 Figura 21 - "Digicars", CGI por Tommaso Lanza. 49 Figura 21 "Biocars". 49 Figura 22 -"Anarcho-evolutionists" and "Very Large Bike". 50 Figura 23 - "Train", CGI por Tommaso Lanza. 51 Figura 24 - Exo-Esqueleto da ReWalk. 53 Figura 25 - Carruagem do reator nuclear. 54 Figura 26 - Tablet desdobrável que permite controlar os "hosts", exemplo de um objeto diegético em Westworld. 54 Figura 27 - Comboio, CGI by Tommaso Lanza. 55 Figura 28 - Comboio que transporta os "guests" para o "Westworld". 55 Figura 29 - "Foragers". 56 Figura 30 - "Foragers", fotografia de Jason Evans. 57 Figura 31 - "Foragers", fotografia de Jason Evans. 57 Figura 32 - Descrições dos eventos acústicos que vão ser introduzidos na "Machine Listening" 59 Figura 33 - Machine Listening a funcionar na ausência do "White Noise". 60 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xiv Figura 34 - "White Noise" em funcionamento. 61 Figura 36- Bancada de trabalho. 64 Figura 37 - Video still 00:02:36. 64 Figura 38 - Video still: 00:01:46. 65 Figura 39 - Video still 00:02:10. 65 Figura 39 - Video still 00:02:12. 66 Figura 40 - Video still 00:02:18. 66 Figura 41 - "Training Dirt". 67 Figura 42 - "Z-eye" em funcionamento. 73 Figura 43 - "Bloqueio Ativo". 74 Figura 44 - O "Cookie" (posição central). 75 Figura 45 - Sala de controlo do Cookie. 75 Figura 46 - Funcionalidade da “Simulação Corporal”. 78 Figura 47 - Funcionalidade do "Ajuste temporal". 78 Figura 48 - Funcionalidades “Procurar”, ”Foto”, “Música” e “Mensagens”. 79 Figura 49 - Funcionalidades “Ampliar”, “Mapa” e “Bloqueio”. 79 Figura 50 - Funcionalidade do "Bloqueio" em evidência. 80 Figura 51 - "Lacie Pond - 4.243". 81 Figura 52 - "Social rating interface". 81 Figura 53 - Levittown, NY, USA, em 1950. 84 Figura 54 - Bairro de "Lacie Pound". 84 Figura 55 - Fachada central das casas em "Nosedive". 85 Figura 56 - "Ryan" (à esquerda) de azul escuro. 86 Figura 57 - Segurança do aeroporto. 86 Figura 58 - Paleta de cores “1” do início do episódio. 87 Figura 59 - Paleta de cores “2” do início do episódio. 88 Figura 60 - Paleta de cores “3” do início do episódio. 89 Figura 61 - "Pelican Cove: Limited Edition Living”. 90 Figura 62 - Paleta de cores “1” do final do episódio. 91 Figura 63 - Paleta de cores do aeroporto. 91 Figura 64 - Paleta de cores “2” do final do episódio. 92 Figura 65 - Paleta de cores “3” do final do episódio. 93 Figura 66 - Paleta de cores do final. 93 Figura 67 - Paleta de cores do vestido de "Lacie" em "Nosedive". 94 Figura 68 - Paleta de cores do início do episódio (à esquerda) contrastando com a paleta de cores do final do episódio (à direita). 94 Figura 69 - Lente de contacto como objeto diegético em Nosedive. 95 Figura 70 - Aplicação do sistema de cotação social em Nosedive. 96 Figura 71 - Sistema de identificação facial da lente de contacto. 96 Figura 72 - Sistema de identificação facial da lente de contacto. 97 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xv Figura 73 - Layout do sistema de cotação social. 97 Figura 74 - Responsividade sistema de cotação social. 98 Figura 75 - Mecânica gestual: "swipe right" para classificar um post. 98 Figura 76 - "Swipe up" como signo de "upload". 99 Figura 77 - Oscilação da cotação social em Nosedive. 99 Figura 78 - Esquema que situa as características subjacentes a Science Fiction. 101 Figura 79 – “Taxonomy of critical practice”. 120 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xvi Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xvii Lista de Acrónimos UX – User Experience SNS – Serviço Nacional de Saúde MoMA – Museum of Modern Art EXD – ExperimentaDesign UMK – United Micro Kingdoms DIY – Do It Yourself ONU – Organização da Nações Unidas I.A. – Inteligência Artificial IMdB – Internet Movie Database IoT – Internet of Things Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) xviii Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 1 Introdução A conjuntura mundial em que estamos inseridos está altamente dependente das novas tecnologias e a utilização exacerbada que fazemos delas fortalece o vínculo, quase indissociável, entre pessoas e máquinas. A era digital e consequente anexação dos serviços a este meio tinha como pretensão auxiliar e agilizar a organização de serviços ou de indústrias, mas quando surge uma anomalia que impossibilite a sua utilização o caos instaura-se. Se os servidores de uma plataforma nacional, Sistema Nacional de Saúde (SNS), Portal das Finanças ou mesmo o moodle, estiverem obstruídos ou a força dos mesmos não consiga comportar o número de acessos à plataforma, os cidadãos não têm outra alternativa de aceder aos conteúdos, fruto da migração total de serviços para o digital. Não é só a falta de acesso à internet que limita a acessibilidade de serviços, a dependência dos meios que possibilitam este acesso é também um fator a ter em conta, nomeadamente os smartphones, os computadores, os tablets e recentemente as smart TV’s, criaram um ciclo vicioso à volta das novas tecnologias e sair delas advinha-se uma tarefa complexa. Anexado a estes dispositivos está, não só a vida profissional de um cidadão, como a vida privada e respetivos círculos de amigos que são fundamentais numa sociedade que, em alguns casos, depende de partilhas, likes e followers para poder reclamar uma posição relevante na esfera digital. Yotubers, Instagrammers ou influencers das redes sociais são os novos atores deste paradigma tecnológico e a sua presença consecutiva nas nossas casas, culminam num soft control sob nós, apresentando “realidades” ou objetos que na maioria das vezes são forjados, manipulados e depois apresentados na rede, cobertos de “purpurinas”, quer sejam ornamentos de um objeto (por exemplo as televendas) ou de uma realidade paralela. Apesar das ferramentas de trabalho dos designers terem sido atualizadas, alguns profissionais desta área consideram que o papel que lhes está a ser atribuído, pouco difere daquele que lhes era conferido na altura da revolução industrial, fazendo perpetuar o aclamado “design tradicional”1. Inconformados com este papel, alguns designers assumiram uma postura crítica em relação à sobreposição da indústria no design, reivindicando, não só a autonomia desta área e dos seus profissionais, como também o papel de modificador social que o design podia desempenhar. Os designers têm valências demasiado preciosas para serem suprimidas e guiadas pelos fluxos comerciais, económicos e sociais, que constantemente exigem mais produtos, eles têm responsabilidade social de entregar aos cidadãos o manifesto cultural, bem como podem e devem apresentar as suas críticas à sociedade. Como Tharp & Tharp (2016) relatam, colocar em causa a capacidade reflexiva e crítica de um designer seria o mesmo que questionar a legitimidade de um cartoonista crítico ou colocar em causa as capas da revista Time, que tantas vezes fazem uma alusão crítica às decisões tomadas pelo presidente norte-americano Donald Trump. 1 “Designer tradicional” é o termo atribuído aos profissionais do design que guiam o seu trabalho segundo a coluna “A” do manifesto “A/B” de Dunne & Raby (2013) presente na figura 7. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 2 Imersos neste contexto reivindicativo e pretensor de colocar o design num patamar diferente daquele a que está submetido, designers como Anthony Dunne, Fiona Raby, Alice Rawsthorn, Bruce e Stephanie Tharp, Ivica Mitrović entre outros, exploram as barreiras conceptuais que envolvem o design crítico e especulativo. O termo “design crítico” foi cunhado por Anthony Dunne nos anos 1990 na sua obra Hertzian Tales e tinha como principal objetivo desafiar as premissas e os conceitos inerentes aos objetos quotidianos, utilizando a abordagem subjacente na teoria crítica e transladá-la à área do design. Juntamente com Fiona Raby, a dupla de designers britânicos Dunne & Raby, criaram o umbrella term2 design especulativo, como uma das formas de colocar em prática a crítica no design. As diferentes terminologias conferidas a este termo têm como objetivo primordial a utilização do design como veículo de reflexão social acerca das problemáticas vigentes no paradigma em que estamos inseridos. As principais características que guiam o design crítico são transversais aos termos “design associativo”, “design discursivo”, “design fiction” e “design especulativo”. Através do exercício reflexivo que prima pela aferição de problemas éticos, culturais ou sociais inerentes aos desenvolvimentos científicos ou tecnológicos, estas recentes áreas do design podem operar de duas formas distintas: presentear o público com um presente alternativo como forma de provocar uma reação pública ou especular à cerca do futuro cientifico e tecnológico, de maneira a que o público possa decidir se pretende esse futuro. O modo de atuação destas temáticas é rebuscado e pode, por vezes, criar perplexidade e confusão aos profissionais do design, justamente por colocar em suspenso valores, crenças, “certezas” e ideias fixas. Tanto o design crítico como outras práticas associadas ao seu exercício, pretendem demonstrar que os conceitos inerentes a determinadas áreas do conhecimento não são imutáveis e que o designer pode ser o intermediário que faculta essa mesma ideologia dinâmica à comunidade, através do seu olhar crítico e cético em relação à forma como o mundo lhes é apresentado. A emergência das novas tecnologias bem como as consequências resultantes da sua utilização intensiva, culimaram na alteração de padrões comportamentais de uma sociedade. Cada vez que se verifica uma evolução no paradigma tecnológico-científico, a corrida para a aplicação desse progresso em produtos e gadgets é por vezes irrefletida. A aplicação do exercício crítico e especulativo em design tem precisamente essa pretensão, ser utilizada como um veículo de reflexão social em relação às consequências da complexidade e intensificação tecnológica. Desta forma, o objetivo principal desta dissertação é esclarecer os conceitos e práticas inerentes ao design crítico e especulativo e procurar de que forma os seus princípios podem contribuir para dar respostas a problemas que residem no contexto mundano. 2 A expressão umbrella term, em português “termo guarda-chuva”, é uma palavra utilizada para reunir uma vasta gama de conceitos, pertencentes a uma temática comum a todos eles. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 3 Apesar destas temáticas não serem de interesse geral, é importante arranjar tempo para refletir sobre o mundo impaciente e sedento pelo “amanhã”. O design crítico e especulativo entram neste campo com essa mesma pretensão: ser uma área que almeja a reflexão social e que coloca as premissas mundiais em causa, por forma a que o público e os designers não fiquem retidos nas normativas que guiam o planeta e que possam contemplar esta temática como um exercício não só útil, como importante para a aquisição de um olhar cético e crítico em relação ao que nos é dado, que ao fim ao cabo é a característica que os designers devem possuir– a visão pan-óptica. Para compreender de que forma estas características podem ser utilizadas para dar respostas a problemas mundano, definiu-se um conjunto de objetivos secundários: O1 – Perceber que características podem conduzir um projeto de design crítico e especulativo. O2 – Averiguar se as pretensões subjacentes ao design crítico e especulativo são transversais a outras áreas que não o design. O3- Compreender de que forma a ficção científica pode auxiliar o exercício crítico e especulativo na obtenção da reflexão social. Para ir ao encontro dos objetivos propostos, optou-se por aferir as diferentes nomenclaturas e características conferidas ao design crítico e especulativo, entender de que forma essas características aparecem em projetos desta índole e procurar, através da análise de conteúdos, de que maneira estas características se apresentam nos episódios White Christmas e Nosedive da série televisiva Black Mirror. O primeiro e segundo capítulo desta dissertação encarregaram-se de reunir as diferentes nomenclaturas e características inerentes a esta área do design. Através da aglomeração e exploração das definições avançados por Dunne (2005), Sterling (2005), Bleecker (2009), Dunne & Raby (2013), Auger (2013), Bardzell & Bardzell (2013), Malpass (2013, 2017), Sanders & Stappers (2014), Tharp & Tharp (2013 e 2015), Mitrović (2015) e Johannessen (2017), decidiu agregar-se as características mais aclamadas por eles. Esta congregação resultou na construção de uma taxonomia conceptual que guia o processo inerente ao design crítico e especulativo, composta por seis categorias de análise distintas: i) Postura cética, crítica e reflexiva; ii) Narrativa; iii) Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico; iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro; v) Capacidade de prospetividade e, por último, vi) Liberdade económica e inutilidade técnica. Assumindo como orientadora conceptual a bateria conceptual forjada, analisaram-se os projetos United Micro Kingdoms (2013), Foragers (2009 a 2010), Not Yet Heard (2010) e Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 4 Teacher of Algorithms (2015), bem como os episódios White Christmas e Nosedive da série antológica Black Mirror. Toda a análise foi guiada pelo processo de reflexão crítica, que para Noble & Bestley (2005) é utilizado “(…) pelo designer (…) para testar a eficácia [da experiência] em relação a um conjunto de critérios (…)” (p. 68). No que diz respeito à análise dos projetos presentes no terceiro capítulo, procurou-se encontrar as características taxionómicas na sua concretização, bem como se criticou algumas particularidades que poderiam ser exploradas de outra forma. Em relação ao quarto capítulo e consequente análise dos dois episódios selecionados da série Black Mirror, numa primeira instância explicou-se a narrativa e o enredo do episódio, e numa segunda, cruzaram- se as temáticas e pretensões do episódio com a taxonomia conceptual inerente à prática do exercício crítico e especulativo em design, bem como se realizou uma análise cromática (somente em Nosedive), aos objetos diegéticos e à narrativa de cada um A primeira parte do quarto capítulo, diz respeito a uma análise denotativa do episódio, que se carateriza pelo “(…) significado primário e literal de uma comunicação (…) [onde] se tenta tornar clara a mensagem pretendida” (Noble & Bestley, 2005, p. 69). Já a segunda parte do capítulo, traduz-se na concretização de uma análise de conteúdo dos episódios, que se define como “(…) um conjunto de técnicas de análise de comunicações (…)” (Bardin, 1977, p.31). Esta análise de conteúdos também se assume como conotativa, visto que é possível verificar “(…) os significados secundários inerentes a uma comunicação (…)” e que a interpretação de cada episódio “(…) não é fixada pelo seu criador ou autor, mas é igualmente determinado pelo leitor” (Noble & Bestley, 2005, p.69). A análise foi conduzida com a pretensão de encontrar características inerentes a um projeto de design crítico e especulativo para além da área de atuação do design, nomeadamente em dois episódios de uma série televisiva. Esta análise, pode, portanto, ser considerada como um testemunho da versatilidade e polivalência que esta área do design incorpora, bem como abre a possibilidade de tais premissas guiarem a atuação do design como veículo crítico e reflexivo na sociedade. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 5 Capítulo 1. Design, teoria crítica e design crítico: conceitos e características O presente capítulo tem como ambições principais, encontrar analogias entre as definições da palavra design de Flusser (2007), Heskett (2005) e Simon (1996) com o papel social que o design pode incorporar, explicitar as premissas principais que movem a teoria crítica, identificar ao longo da história do design onde começa a surgir a pretensão de tornar o design num veículo de reflexão social e aproximar os conceitos de teoria crítica com design crítico. 1.1 Design- Conceitos, definições e abordagens Proveniente do latim, designare3 (“designar”, “projetar”, “desenhar”), a palavra design está diretamente relacionada com a palavra “técnica”, proveniente do grego techné, que significa “arte” (Flusser, 2007, pp. 181-183). Um “artista”, portanto, é alguém que domina a técnica, alguém como um tekton (“carpinteiro”) que usufrui do seu conhecimento para moldar formas naturais, como a madeira, de maneira a que as torne menos brutas (ibid.). O artista provoca o aparecimento da forma. Platão criticava o papel do artista, justamente porque ele guiava os seres humanos a idolatrar aquilo que não era natural, ludibriava-os com deformações (ibid.). O equivalente latino do termo grego techné é articulum (pequena obra) e designa algo que orbita em volta de algo (ibid.). A expressão Ars significa, portanto, artifex (“artista”), algo ou alguém que se faz passar por aquilo que não é, apresenta-se como um “impostor”, um “ilusionista”, um indivíduo que habilmente engana (ibid.). Devido à falta de limites conceptuais definidos ao design, a sociedade moderna separou o mundo das artes do mundo da técnica e das máquinas, resultando em dois distintos ofícios: o científico e quantificável, o estético e avaliativo. De acordo com Flusser: A palavra design entrou nessa fenda como uma espécie de ponte entre dois mundos. (…) E por isso, “design” significa aproximadamente aquele lugar em que arte e a técnica caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura (Flusser, 2007, p.181). Flusser (2007) demonstra que a grande discrepância entre categorizações reside na confluência de significados que são atribuídos à palavra. Através destas designações, pode entender-se a forma como o design conseguiu ocupar o seu lugar no discurso contemporâneo, justamente por criar uma ponte entre dois conceitos (p.181). Não existindo um conceito 3 Link para consulta: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/italian-english/designare Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 6 suficientemente abrangente, capaz de abarcar todas as dimensões contidas no termo design, atualmente, podemos aplicá-lo a diversos contextos: design de moda, design industrial, design de comunicação, design de interiores, character design, design gráfico, design de user experience (UX), entre tantos outros. Com tantas aplicações possíveis, será que se pode caracterizar o design de forma holística? De forma clara, Heskett (2005) constata que o “design é uma das características básicas do que é ser-se ser humano e um determinante essencial da qualidade de vida. Ele afeta-nos em cada detalhe de cada aspeto do que fazemos durante o dia” (p. 2). Com efeito, o design preocupa-se simultaneamente com a estética e com a funcionalidade de tudo o que nos envolve no quotidiano, seja quanto às vias de acesso a uma cidade, à iluminação de um espaço, de um cartaz publicitário ou de uma simples maçaneta de uma porta (ibid.). Independentemente destes projetos serem bem-sucedidos ou não, a verdade é que o designer tem a responsabilidade de resolver problemas e acima de tudo, de formular novos. Atualmente, o design está intimamente ligado às novas tecnologias e aos novos media, porém Heskett (2005) afirma que “(…) o design não é determinado pelo processo tecnológico, estruturas sociais, sistemas económicos ou qualquer outra fonte. Ele resulta de decisões e escolhas dos seres humanos” (p.4). Outra das características incontornáveis acerca da palavra “design” é a sua dicotomia a nível de classificação gramatical. Em inglês a palavra “design” tanto pode ser utilizada como substantivo ou como verbo (Flusser, 2007, p.181). Como substantivo a palavra quer dizer, entre outras definições, “propósito”, “plano” ou “intenção”, enquanto como verbo – to design – significa “planear”, “projetar”, “conceber” ou “esquematizar” (ibid.). Em português, a sua categorização gramatical incide, somente, na utilização da palavra como substantivo4. O papel social que Heskett (2005) pretende incutir ao design, provém de uma ideologia anterior aos seus estudos, explorada por Herbert Simon. A ideia de utilizar o “design” como uma corrente de pensamento ou de ação, tem como origem a definição de “design” de Simon (1996): “Everyone designs who devises courses of action aimed at changing existing situations into preferred ones” (Simon, 1996, p. 111). Simon (1996) pretendia que o “design” nunca fosse concebido com um objetivo final, justamente porque a dinâmica social está em constante alteração (1996, citado em Huppatz, 2017, p. 39). A sua conceção de design expande-se para lá do espectro social, abrangendo mesmo o ordenamento e planeamento territorial de uma cidade, defendendo que “(…) o planeamento urbano [devia ser contemplado] como uma atividade criativa e valiosa, na qual muitos membros de uma comunidade pudessem ter oportunidade de participar (…)” (Simon, 1996, p. 130). Esta definição sugere que o design deva ser utilizado por profissionais que pretendem substituir o 4 Com a pretensão de preservar o conceito original das definições elencadas, optou-se por manter o idioma nativo em algumas citações consultadas. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 7 paradigma existente, por um que seja preferível, aproximando bastante esta definição, das defendidas por Dunne & Raby (2013) quando se referem ao Future Cone5. As definições de design podem, por vezes, aparentar alguma complexidade por serem demasiado abrangentes, no entanto, a palavra design incorpora precisamente esta extensão porque está entre todos os elementos que constituem uma sociedade. Uma das visões mais precisas e ao mesmo tempo menos palpáveis acerca do papel que o design desempenha, é a de Ken Arnold, Diretor do Museu Médico da Universidade de Copenhaga. No seguimento da conferência “Designing Connections: Medicine, Life and Art”6 que tomou lugar em Londres na Royal Society of the Arts, Arnold (2011) definiu design da seguinte forma: [Design can be] the stable platform on which to entertain unusual bedfellows. The glue for things that may not be naturally sticky. The lubricant that allows movement between ideas that don’t quite run together. The medium through which we can make otherwise awkward connections and comparisons. The language for tricky conversations and translations (2011, citado em Dunne & Raby, 2013, p.188). O design pode, portanto, ser assumido como um verdadeiro veículo de alteração social, um catalisador crítico que almeja sempre um paradigma diferente daquele que é contemplado, uma ferramenta que imagina, explora, supõem, soluciona problemas e que procura novos. 1.2 Teoria crítica e design crítico Durante o primeiro capítulo desta dissertação foi possível conferir as pretensões do design se tornar um possível agente de alteração social. No entanto no início do séc. XX, fruto da revolução industrial e do consequente capitalismo económico, o papel do designer ainda se encontrava relacionado com o setor industrial e com os fluxos comerciais que esta área movimentava. O processo evolutivo inerente à revolução industrial criou uma espiral que subverteu a capacidade cognitiva de um designer a um mero instrumento cultural do capitalismo económico. Como se de uma epidemia se tratasse, os sintomas da revolução industrial perpetuaram-se por todo o globo, alterando o paradigma económico, social, cultural e político de um país. Testemunhando sobre o papel que fora incumbido aos designers americanos durante o início do séc. XX, a obra Power, politics and people do sociólogo americano Charles Wright Mills, descreve a forma como o aparelho cultural se moldava aos vários sistemas políticos e atuava consoante a ideologia política que regia uma sociedade. Nos E.U.A. o aparelho cultural padecia de funções comerciais, fazendo parte de uma ascendente economia capitalista (Mills, 1963, p.376). O designer americano encontrava- se, portanto, numa posição ambígua: por um lado tem uma sociedade subdesenvolvida que 5 As definições sugeridas por Dunne & Raby (2013) serão tratadas com maior verticalidade no capítulo dois. 6 Link para consultar a intervenção de Ken Arnold na conferência: https://www.youtube.com/watch?v=U6proHebV0A Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 8 necessita das suas capacidades publicitárias; por outro lado, está o mundo da cultura, tal como as pessoas o reconhecem (Mills, 1963, p.377). Devido ao facto de a capacidade de produção ultrapassar a procura, a ênfase agora é centrada na criação e manutenção do mercado nacional, tornando o designer numa ferramenta essencial para a obtenção deste objetivo (ibid.). O consumo tem que ser agilizado e para o fazer recorre-se a todas as técnicas de marketing e publicidade que estão disponíveis (Mills, 1963, p. 378). Inserido neste paradigma capitalista que somente objetiva a criação de lucro, o designer via-se encurralado na sua própria profissão: era considerado um agente portador do manifesto cultural ao mesmo tempo que tinha que satisfazer a procura descabida por novos produtos, forçando-o a acelerar o processo criativo (ibid.). Lees-Maffei e Fallan (2014) relatam a postura inovadora que assumiram alguns designers em Itália (1956-1970), num movimento que ficou conhecido como Bel Design7. Este movimento emergiu no período de prosperidade e consumo de massas testemunhado por Mills, refletindo- se, portanto, no tipo de trabalho que o designer desempenhava. Apesar da maioria dos profissionais direcionar o seu esforço para o desenvolvimento de produtos, alguns designers industriais desassociaram-se do fluxo económico que movimentavam e passaram a objetivar alterações políticas e económicas bem como um discurso crítico e proactivo numa sociedade altamente consumista (2014, citado em Malpass, 2017, p. 19). A postura reivindicativa adotada pelos designers em relação à forma como a sociedade é composta e ao papel que lhes era conferido, provém da postura crítica de Karl Marx em relação à sociedade (Bardzell & Bardzell, 2013). Os conceitos subjacentes à postura social do Marxismo são as noções de “ideologia” e “alienação” (ibid.). A primeira noção, tem como ideia principal que as classes sociais dominantes mantêm o seu domínio através da disseminação de mitos que reforçam a ideia que a estratificação de classes é algo positivo e natural, encorajando a classe operária a aderir a este sistema mesmo que este atue contra os seus próprios interesses (e esta, é a noção de alienação) (Bardzell & Bardzell, 2013). A disseminação de mitos é caracterizada pelos mecanismos subjacentes à cultura de consumo. Através de filmes, revistas e do próprio design, as classes altas conseguiam introduzir uma panóplia de normas e de comportamentos que condicionam a atividade da classe operária. Esta postura crítica e altamente cética em relação à forma como a sociedade estava organizada, ficou conhecida como “teoria crítica” e adquiriu uma nova dimensão através das investigações conduzidas por Horkheimer, Adorno e Marcuse, principais impulsionadores da 7 Um dos nomes pelo qual ficou conhecido a Linea Italiana (design italiano) durante os anos 60, descrevendo um período de prosperidade e de consumo de massas onde o design era caraterizado pela racionalidade e pelo enfoque na criação de produtos. Esta linha de design foi tipificada pelos designers Dieter Rams e Braun Ettore. Na Alemanha este período ficou conhecido como Good Form. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 9 Escola de Frankfurt8. Estes académicos, argumentavam que “(…) os produtos provenientes dos mass media e da cultura de consumo eram politicamente regressivos” (Bardzell & Bardzell, 2013). Como forma de desenvolver este argumento, Adorno surge com o conceito “reification”, afirmando que a forma como “(…) as coisas são produzidas pela sociedade, bem como a forma como está organizada, parecem ser inteiramente naturais e inquestionáveis” (How, 2003, p. 172.). Esta abordagem almejava que a crítica pudesse expor tais mecanismos à consciência coletiva, por forma a que se pudesse trabalhar para uma sociedade mais justa (Bardzell & Bardzell, 2013). Para além disso, esta ideologia criticava a forma como a sociedade estava organizada bem como o domínio que os produtores detinham sob as classes mais baixas. Através dos mass media e dos produtos que a sociedade adquiria, os produtores de conteúdos conseguiam fortalecer o vínculo que diferenciava as classes sociais, justamente porque incutiam valores e crenças nesses mesmos produtos, acabando por moldar e definir a opinião pública. Com o mote da crítica social de Marx e do ceticismo que a Escola de Frankfurt assumia, a “teoria crítica” tornava-se numa corrente ideológica robusta que conseguia incorporar os desejos de mudança de alguns profissionais, como é o caso dos designers. Achille e Pier Castiglioni foram dos primeiros designers a incorporar este espirito crítico, podendo ser considerados como os primeiros critical designers (Malpass, 2017, p.19). Apesar de estarem ligados ao mundo industrial, os irmãos Castiglioni começaram a integrar redefinições conceptuais e de uso nos seus trabalhos, como serve de exemplo o Sella Stool with Bicycle Saddle, ilustrado na figura 1. 8 A escola de Frankfurt não era uma escola física, mas sim uma corrente de pensamento comum – a teoria crítica - a vários estudantes da Universidade de Frankfurt como Theodor Adorno, Erich Fromm, Herbert Marcuse e Max Horkheimer. Figura 1 – Projeto “Sella Stool with Bicycle Saddle” (Retirado de Malpass, 2017, p. 20). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 10 O conceito desafiava as abordagens ortodoxas e dogmáticas impostas pela indústria e o resultado era a criação de produtos que eram familiares ao público, mas que eram introduzidos em contextos diferentes, forçando o público a interpretar o objeto e o seu uso. A multiplicação de grupos que apoiavam esta mudança conceptual (Superstudio, Gruppo 9999, entre outros) tornaram-se veículos de crítica social e industrial, pretendendo julgar o ideal funcionalista do design (Malpass, 2017, p. 22). Caracterizado pela otimização, utilidade e praticidade dos objetos, os trabalhos apresentados pelos coletivos de design, incorporaram conotações simbólicas, culturais e existenciais, abandonando o ideal imposto pela conjuntura social e industrial da altura (Malpass, 2017, pp.23-24). Apesar de tudo, as pretensões de emancipação do design eram suprimidas pelo forte vínculo que detinha com o setor industrial que, ao desvincular-se dele, corria o risco de ser associado à arte. O design estava constantemente à sombra da arte e podia ser entendida em dois símbolos: “art=good, design= not so good “(Rawsthorn, 2014, p.109). O argumento tradicional que definia “arte” estava relacionado com a liberdade intelectual, de expressão e forma que era conferida e defendida pelos artistas (ibid.). O design por outro lado, estava enclausurado ao ver a sua área de ação condicionada pelas exigências e oscilações mercantilistas, pela procura de objetos com funções específicas e pelo controlo que os exportadores detinham em relação aos objetos de design (Rawsthorn, 2014, pp.109-110.) Apesar do forte vínculo que existia entre o design e a indústria, surgia a ideia que o design podia ser um “meio de investigação intelectual e de autoexpressão, da mesma forma como os artistas modernos faziam arte” (Rawsthorn, 2014, p.125). Motivados pelos princípios neo-construtivistas9 de Bruno Munari os ilustres designers italianos, Carlo Mollino, os irmãos Castiglioni (Achille, Pier e, inicialmente Livio), Ettore Sottsass, Alessandro Mendini, Joe Colombo e Enzo Mari, acreditavam que o design acrescentaria muito mais à vida quotidiana da sociedade se se liberta-se da sua função comercial, incorporando os valores da arte (ibid.). Desta forma, é pertinente atentar a dupla questão que Rawsthorn (2014) coloca: “Será que isto significa que o resultado final é o mesmo da arte, ou que deve ser definido como arte em vez de design?” (p.131). Para a crítica de design: “não” em ambos os casos, justificando que: o design sempre teve uma função designadora, independentemente de ser conduzida por um objetivo industrial ou pela curiosidade intelectual de um designer (p.131). Rawsthorn acrescenta ainda que a funcionalidade não precisa, necessariamente, de incorporar um propósito prático ou de valor comercial, pode servir para comunicar uma mensagem política, social ou cultural ou permitir que o designer embarque num exercício de investigação (ibid.). Todos os projetos de design (quer sejam comerciais, conceptuais ou críticos) são definidos pela cultura do design que está relacionada com os paradigmas vigentes da altura em que o projeto foi concebido (p.132). Para Rawsthorn (2014), os projetos de design podem explorar 9 O construtivismo era uma filosofia artística e arquitetónica que pretendia que a arte fosse utilizada para fins sociais. Link para consulta: https://en.wikipedia.org/wiki/Constructivism_(art) Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 11 um aspeto da história do design ou o consequente impacto que esse evento tem na vida contemporânea (p.132-133). De acordo com a autora, a arte, poderá incorporar e transparecer estas características ao público, porém poderá optar por não o fazer, conferindo-lhe assim uma liberdade criativa e intelectual que costuma, por vezes, ser negada ao design (p. 131). Em 1999, Alexander Payne, diretor de design na casa de leilões Phillips, cria o termo design- art como forma de descrever os lotes de design contemporâneo à venda. A intenção dele era persuadir colecionadores de arte ao dizer que o “design”, particularmente aquele que estava relacionada com mobília, tinha muitas das qualidades da pintura e da escultura às quais eles estavam habituados a comprar (Rawsthorn, 2014, pp.126-128). Contudo, o principal problema com a design-art era que, ao aproximar a perceção de design com o mundo das artes, ele incorporava as valências da arte, deixando o design com a mesma ausência conceptual que detinha na altura pré-industrial. Para Rawsthorn (2014), apesar deste termo unir o mundo do design e da arte, a design-art: Parecia tão ubíquo que obscurecia outras áreas do design, discutivelmente mais profundas e mais exigentes, perpetuando assim a perceção equivocada do design como um meio raso sem o rigor ou a complexidade crítica que a arte detinha (Rawsthorn, 2014, p. 128). Na prática, as intenções dos designers podiam ser comprometidas pelas imposições dos fabricantes, porém conseguiram fortalecer o seu ofício, ao desenvolverem trabalhos mais expressivos e complexos, introduzindo a mensagem que queriam passar para a sociedade através das formas que os objetos tomavam. Desta maneira, o designer passava a ser considerado um autor, certificando-se que a sua obra final refletia a visão que idealizara (Rawsthorn, 2014, p.129). 1.3 Critical Design A autonomia cognitiva e a liberdade criativa que os designers adquiriram, materializou-se através do aparecimento de grupos de designers que reivindicaram o processo de design como um veículo de investigação intelectual, como é o caso dos cofundadores do grupo Metahaven, em Amesterdão, Daniël van der Velden e Vinca Kruk (Rawsthorn, 2014, pp.129-130). Regidos por um método de “não-esperar por clientes”, os designers identificavam um problema e conduziam um exercício não solicitado de design, servindo de exemplo a reestruturação da identidade visual de um país ou a criação de um novo tipo de moeda (Rawsthorn, 2014, p.130), assumindo sempre uma postura crítica em relação à forma como o mundo está concebido. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 12 Anthony Dunne desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento desta temática, apelidando-a de “critical design”, que visava o desenvolvimento de projetos que criticassem a cultura de consumo, ocupando assim, um lugar semelhante aos dos aristas conceptuais e historiadores culturais (ibid.). Mais tarde, Anthony Dunne associasse à designer Fiona Raby, dando origem ao duo Dunne & Raby. Apesar de pretenderem distanciar-se da corrente ideológica da Escola de Frankfurt mencionada por Bardzell & Bardzell (2013), a definição de design crítico dos autores incorpora pontos de contacto evidentes: O design de produto (...) oferece uma experiência muito limitada. Tal como nos filmes de Hollywood, a ênfase reside no prazer rápido e nos valores conformistas. Este género reforça o status quo ao invés de o contrariar. Estamos rodeados por produtos que nos dão a ilusão de escolha e que encorajam a passividade. Mas o design industrial, alocado no centro da cultura consumista (...) poderia ser subvertido a uma postura social mais benéfica, oferecendo-se como um veículo capaz de fazer espoletar a imaginação do utilizador (Dunne & Raby, 2001, p. 45). A linguagem utilizada, “ilusão de escolha, “passividade”, “reforça o status quo”, “prazer rápido e valores conformistas”, suporta o inconfundível selo da ideologia da Escola de Frankfurt (Bardzell & Bardzell, 2013). Para Bardzell & Bardzell (2013), Dunne & Raby (2001) incorporam uma postura importante: grande parte das vezes os designers perpetuam ideologias nocivas no seu trabalho ao invés de se oferecerem como uma resistência. Qualquer designer, de uma forma ou de outra, “(…) está eticamente envolvido nas problemáticas subjacentes à esfera pública (…)” (ibid.). Desta forma, para Dunne & Raby (2001), o design pode ser dividido em dois grandes blocos antagónicos: o design afirmativo e o design crítico (p. 58). O design afirmativo reforça a situação em que se está inserido, confirma as expectativas culturais, sociais, técnicas e económicas (ibid.). Por outro lado, o design crítico “(…) rejeita a situação em que está inserido como sendo a única e providencia a crítica dessa mesma situação através da incorporação de alternativas sociais, culturais, técnicas e económicas através do design” (ibid.). Como se pode verificar, o design crítico tal como a Escola de Frankfurt, utiliza a teoria crítica, como uma forma de investigação que se dedica à transgressão e confronto com os padrões sociais que estão impostos na sociedade, oferecendo resistência à conformidade e passividade típicas da ideologia capitalista, almejando sempre a emancipação social e o debate (Bardzell & Bardzell, 2013). Numa versão mais atualizada da sua caracterização de design crítico, Dunne & Raby (2013) definem a área de ação do design crítico, afirmando que “(…) deve ser utilizado como um gatilho que faça espoletar consciência social em relação às tecnologias que nos rodeiam” (p. 33–36). Pode-se então constatar que o design crítico é uma definição “viva”, ou seja, o design crítico não ficou constrangido nem estagnado nos problemas sociais que o fundamentaram. Se na altura da sua fundação o principal foco incidia sobre o capitalismo económico, a Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 13 estratificação de classes e a organização social, nos dias que decorrem o enfoque do design critico recai nas novas tecnologias e nos problemas que elas podem trazer à esfera social, demonstrando que não é um conceito estático, mas sim um que se molda à sociedade e aos principais problemas que advêm da sua evolução. Dunne & Raby (2013) demonstram esta mesma flexibilidade e versatilidade do design crítico, afirmando que: O design crítico é pensamento crítico materializado. É sobre pensar através do design em vez de palavras, utiliza a linguagem e a estrutura do design para “espicaçar” pessoas. É uma expressão ou manifestação do nosso ceticismo em relação à tecnologia (Dunne & Raby, 2013, p.35). O design crítico consegue fazer com que as pessoas reflitam criticamente acerca de certas temáticas (Malpass, 2017, p. 41). Ao atuar desta forma, o design crítico pode ser descrito como uma prática afetiva ao invés de uma explicativa, justamente porque cria linhas de investigações futuras em vez de providenciar respostas ou soluções a problemas inerentes ao design ou à sociedade (ibid.). Mazé & Redström (2007) descrevem esta função como uma prática que não tenciona simplificar, mas sim diversificar as maneiras pelas quais podemos entender os problemas e as ideias subjacentes ao design (2007, citado em Malpass, 2017, p. 42). Utilizado como um catalisador reflexivo, o design crítico quando é aplicado no design industrial ou de produto, dilata o entendimento de um determinado problema, incita o debate público e em última instância, cria novas visões vindouras desse mesmo debate (Malpass, 2017, p.43). Este nível de discussão é fomentado através da introdução de objetos que comuniquem uma visão que, grande parte das vezes, é assimilada mais rapidamente pelo público do que por uma teoria abstrata. Com a pretensão que as teorias expostas até aqui não se tornem também abstratas, decidiu- se ilustrar os conceitos principais inerentes ao design crítico, através da exposição de alguns projetos. Os projetos mais emblemáticos que plasmam as ideologias inerentes ao design crítico, pertencem a Anthony Dunne (2005), sendo o mais reconhecido de todos o “Faraday Chair” desenvolvido entre 1994 e 1997. Dunne (2005) utilizou objetos de design para chamar a atenção do público em relação ao campo eletromagnético que envolve o planeta. A Faraday Chair, correspondente à figura 2, é uma peça de mobiliário que oferece abrigo dos campos eletromagnéticos que nos invadem o lar, permitindo abrigar os cidadãos do bombardeamento constante das telecomunicações e consequentes radiações eletrónicas que pairavam num espaço inatingível (Malpass, 2017, p.44). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 14 O objeto expresso na figura 2 coloca questões pertinentes em relação ao campo eletromagnético que envolve o planeta terra, nomeadamente, quais são as implicações desta introdução nas nossas vidas e consequente libertação de radiação eletrónica, que informação é transmitida, quem detém controlo sobre o espaço eletromagnético e quais os seus impactos a nível de saúde (Malpass, 2017, p.44). Em última instância, este projeto expõe parte da cultura material e tecnológica à qual a nossa vivência está associada, criando questões que normalmente nunca são colocadas (ibid.). A Faraday Chair é um exemplo de um objeto que trespassa a sua função principal, conceção esta a que Dunne (2005) apelidou de “para- funcionalidade” e que a descreve como: (…) uma forma de design onde a sua função é utilizada para encorajar a reflexão acerca da forma como os produtos eletrónicos condicionam o nosso comportamento. O prefixo "para-" sugere que este tal tipo de design está inserido no domínio da utilidade, mas pretende ir para lá das definições convencionais de funcionalidade, por forma a que incorpore características poéticas (Dunne, 2005, p. 43). Para Dunne (2005) conseguir cativar a atenção do público não foi uma tarefa de fácil cumprimento, no entanto uma das técnicas a que o designer pode recorrer é o estrangement. Esta técnica sugere que a apresentação pública de objetos descontextualizados do ambiente em que costumam estar inseridos, bem como a sua alteração para objetos “para-funcionais” pode auxiliar o público a libertar-se dos preconceitos estabelecidos que envolvem um objeto específico, podendo consciencializá-lo de que os cânones sociais, institucionais e conceptuais que construímos, não são eternos, nem imutáveis (Dunne 2005, pp.35-36). Por forma a que esta técnica possa chegar ao consumidor é necessário que não se limite a adulterar o aspeto visual do objeto, mas que expanda a sua área de ação para a alteração da sua funcionalidade, ou pelo menos, para o alargamento das possibilidades de utilização que o circunscrevem (ibid.). Este processo incentiva o cidadão a adotar uma postura cética em relação aos valores e ideologias preconcebidas que o envolvem, permitindo “(…) um encaixe entre formas e coisas (...) que abrem a possibilidade do design se tornar numa forma de discurso (...) que ao desafiar leis em vez de as afirmar, incorpora uma função crítica (…)” (Dunne, 2005, p.42). Figura 2 - Projeto "Faraday Chair" realizado entre 1994 e 1997 (Retirado de Dunne, 2005, p. 144). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 15 Em Hertzian Tales, Anthony Dunne (2005) faculta ao leitor projetos que considera incorporarem o conceito de para-funcionalidade, recorrendo largamente ao trabalho do designer polaco Krzysztof Wodiczko. Mais reconhecido pelas suas projeções em fachadas de edifícios por tudo o mundo, Wodiczko em 1969 desenvolveu o projeto Personal Instrument, que é explicado da seguinte forma: O instrumento transforma o som em movimento. O instrumento funciona em resposta ao movimento das mãos. O instrumento reage à luz solar. O instrumento é portátil. O instrumento pode ser utilizado em qualquer sítio, a qualquer hora. O instrumento é de uso exclusivo ao artista que o criou. O instrumento permite atingir virtuosidade (Wodiczko, 1999, p.102). A proposta que o artista polaco apresentava pode ser entendida como um instrumento que, apesar de só poder ser utilizado pelo seu autor, necessita do meio envolvente para captar o som e desta forma, as pessoas têm que deduzir como o aparelho funcionará. O estrangement e o desconforto das pessoas que se cruzavam por este objeto, por não saberem como funciona nem o poderem utilizar, é uma das características basilares que estão inerentes ao conceito “para-funcionalidade” sugerido por Dunne (2005). Figura 3 - Projeto "Personal Instrument" (Wodiczko , 1999, p. 103) O “Allien Staff” (1993), apresentado na figura 4, de Wodiczko apresenta outra forma de chamar a atenção do consumidor – o design como intervenção. Projetado para mediar a relação entre imigrantes e a população endógena, o projeto apresenta-se como um instrumento, que Consiste num bastão eletrónico, equipado com um pequeno monitor e um altifalante na extremidade superior. No fundo do cabo, encontra-se um cilindro transparente denominado por Xenolog Section, que contem imagens e exemplos que ilustram o caminho que a pessoa que o transporta já percorreu: cartas, vistos, contratos de emprego, etc. O bastão, atrai a atenção dos transeuntes que se aproximam do Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 16 imigrante, reduzindo assim a distância cultural e étnica, entre um estrangeiro e um nativo, almejando um diálogo saudável sobre diferentes realidades (MACBA, 2005). Ao disseminar o número de utilizadores deste bastão, Wodiczko analisou a interação entre os portadores do Allien Staff e o público, permitindo contemplar um exemplo de design interventivo, que não estivesse alocado em galerias de arte (Dunne, 2005, p.87). Dissertando acerca do trabalho de Wodiczko, Patrick Wright10 afirma que o público não consegue contemplar estas intervenções como concretização de problemáticas devido ao facto da esfera pública aceitar a ideia inerente aos projetos de Wodiczko, mas não a conseguir visualizar como uma experiência crítica (Wright, 1992, citado em Dunne, 2005, p. 87). Wright (1992), afirma mesmo que a sociedade em vez de contemplar esta experiência social como a materialização de uma crítica, “(…) eles pensam que os projetos foram concebidos com o objetivo de produção em massa e instantaneamente imaginam 100.000 Poliscars [outro projeto de Wodiczko deste género] a invadirem a cidade” (Wright, 1992, ibid.). Apesar da vertente prática destes projetos, Dunne (2005) revela a importância dos modelos não- funcionais em design. Estas propostas de modelos conceptuais, funcionam como objetos didáticos de design, que desafiam as conceções inerentes ao próprio design, um género de meta-design. No entanto, a desvinculação da função técnica nestas propostas de modelos conceptuais, podem ser otimizadas. Se o modelo de design fosse visto como um veículo entre a realidade e a ficção (ou realidades alternativas), o seu carácter “não-funcional” poderia suscitar reflexões para lá do espectro técnico-funcional associado aos protótipos (p.89.), tornando A sua inutilidade técnica [como] parte do seu valor, deslocando a atenção do consumidor para a função conceptual da máquina, que fomenta a imaginação e coloca os espetadores num espaço de reflexão crítica (Dunne, 2005, p. 89). 10 Escritor britânico e académico nas áreas dos estudos culturais e da cultura histórica. Consultado a 10.07.18, através de: http://www.patrickwright.net/biography/ Figura 4 - Projeto "Allien Staff" (Wodiczko, 1992) Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 17 Dunne (2005) altera ainda a definição atribuída a este tipo de produtos – “protótipos” – para “genótipos”, por forma a que a ênfase dos produtos experimentais seja focada na ideia que representa e não nas questões técnicas e mecânicas (p. 153). Ao abandonar o realismo técnico, os modelos conceptuais de design podem ser combinados com outros media por forma a que os contextos de utilização possam ser expostos de uma forma mais clara. Sem antever a forma como certos conteúdos televisivos poderiam atuar, Dunne (2005) cria normativas basilares onde séries televisivas como Black Mirror e Westworld gostam de operar, argumentando que: (…) ao utilizar modelos conceptuais e [consequente] aplicação em filmes, os espetadores podem ser atraídos para o espaço conceptual onde o objeto está inserido, em vez de o apreciar em si mesmo (Dunne, 2005, p.92). Estes projetos exemplificam a interação complexa entre a realidade e a imaginação, sendo guiados pela imaginação e intuição, ao invés da lógica, acarretando uma racionalidade própria e uma alternativa aos moldes científicos e industriais que dominam o mercado (Dunne, 2005, p. 66-67). Quando este tipo de adereços é implementado no seio social, subverte e desafia as conceções mundanas criando uma fenda conceptual (ibid.). Esta fenda vai ser preenchida por um espaço de reflexão social que oferece ao cidadão a liberdade de repensar as barreiras conceptuais que delimitam “o que é?” e “o que poderá ser?”, de um determinado objeto. E este é, segundo Dunne (2005), o principal papel dos objetos “para- funcionais” – atuarem como veículos críticos através do design (pp. 66-67). Dunne (2005), refere ainda que a alocação deste tipo de projetos a galerias de arte, cria uma falsa sensação de “dever cumprido” aos designers, visto que os espetadores reconhecem a utilidade e o objetivo das propostas de design crítico, mas não conseguem transportar essa ideologia para um contexto doméstico (p. 86). Por outro lado, se os produtos apresentados estiverem prontos a entrar no mercado, a galeria torna-se numa sala de exposições, entrando “(…) na vida quotidiana através do mercado: uma loja especializada em vender a cultura material da arte, trocando as reinterpretações de objetos familiares pela perplexidade de novos” (ibid.). Outro dos designers que possuem uma postura muito cética em relação à forma como o design se assume na área industrial e que assume essa postura através do design crítico é Martí Guixé11. O designer espanhol, aplicou os conceitos inerentes ao design crítico no mundo da indústria, através da colocação da frase autoexplicativa “NO los compres si NO los necesitas”, ilustrado na figura 5, em sacos de sapatos da marca “Camper” entre 2002 e 2004, fazendo renascer o espírito crítico e reivindicativo italiano dos anos 1960’. 11 Designer espanhol que, ao verificar os limites do design tradicional, conduziu um movimento contra o próprio design com a pretensão criar novas perspetivas no design, assinado com o nome próprio: Martí Guixé. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 18 Estes tipos de abordagens críticas e que desafiam as premissas fulcrais da cultura consumista, Não só alinham os processos de produção de (…) design, como posiciona[m] os designers como ativistas autônomos, facultando-lhes (…) o direito de usar seu trabalho como veículo de autoexpressão e pesquisa, (…) livre das restrições impostas pela solicitação de objetos de design para uso industrial (Rawsthorn, 2014, p.131). Outro dos projetos que plasma com precisão a postura do design crítico é o “Do You Want to Replace the Existing Normal?”, desenvolvido entre 2007 e 2008, por Dunne & Raby em parceria com o designer Michael Anastassiades. Neste projeto os designers desenvolveram uma coleção de produtos eletrónicos que, intencionalmente, incorporavam valores contrários aos que seriam espectáveis. O Statistical Clock, ou “Relógio Estatístico” representado na figura 6, era um desses objetos e tinha como objetivo principal procurar no feed de notícias diárias o número de fatalidades em acidentes rodoviários, ao mesmo tempo que os organizava através de um banco de dados. Figura 5 - Projeto de ilustração em sacos de compras da marca Camper (Guixé, 2002-2004) Figura 6 - Projeto "Statistical Clock" de Dunne & Raby em parceria com Anastassiades (Dunne & Raby, 2013, p. 36) Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 19 O cidadão configurava o tipo de transporte e o relógio começava a contar o número de pessoas que já tinham falecido. Apesar da sua funcionalidade, os autores sabiam que não havia mercado para este tipo de produto, porque as pessoas não querem ser relembradas deste tipo de informação. Para Dunne & Raby (2013) a reivindicação principal do critical design é precisamente a de “(…) confrontar as pessoas com necessidades alternativas e sugerir um mundo paralelo de produtos (…)”, que alertem e cativem o consumidor para realidades opcionais (p.36). Este tipo de abordagens mais rebuscadas, que divergem dos valores culturais e das conceções mundanas que as pessoas têm do mundo, obrigam os cidadãos a adotar uma postura reflexiva. O design crítico, grande parte das vezes, é contemplado com desdenho, justamente por colocar em causa os padrões sociais que são contemplados como inquestionáveis. No entanto, Tharp & Tharp (2015) defendem que: Questionar a legitimidade da expansão dos produtos de design para esta área [domínio crítico] é o equivalente a colocar em causa o trabalho dos ilustradores que criam cartoons políticos, ou dos músicos que escrevem músicas de intervenção, ou dos cineastas que criam documentários expositivos, de escritores de colunas críticas de opinião, ou de qualquer outro profissional criativo cujos esforços são direcionados para criarem uma sociedade mais consciente ao invés de lhe oferecerem formas básicas de utilidade e de entretenimento (Tharp & Tharp, 2015). De acordo com Malpass (2017), independentemente do foco em que a crítica é aplicada, quando é suplantada no design, a sua abordagem tem como objetivo primordial “(…) gerar debate e estimular a audiência para discutir questões que envolvem o design contemporâneo, a cultura, a ciência, a tecnologia e a sociedade (…)” (p.69). Este tipo de abordagens, têm como denominador comum o que Ezio Manzini (1992) descreve como a derradeira responsabilidade do designer: “(…) contribuir para a produção de um mundo habitável” (1992, citado em Dunne, 2005, p.83). Assumindo esta responsabilidade como premissa, o design deve ser transformado. As áreas que o design abrange na nossa sociedade, bem como a forma como ele atua, devem ser alargadas ao domínio do especulativo e alternativo, por forma a que o consumidor não saiba só “o que quer” para esse tal “futuro habitável”, mas também “o que não quer” (Dunne, 2005, p. 83). Dunne & Raby (2013), também partilham a opinião deste alargamento da área de ação do design crítico ao campo especulativo, afirmando mesmo que este tipo de “(…) propostas de design especulativo (…), desafia suposições, preconceitos e informações preconcebidas em relação ao papel que os produtos desempenham na nossa vida quotidiana” (p.34). É através desta definição de Dunne & Raby (2013) que a temática do “especulativo” e do “alternativo” passam a ser consideradas como uma possibilidade de colocar em prática o design crítico, uma critical design practice. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 20 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 21 Capítulo 2. Design Especulativo – Um conceito polissémico A pluralidade de perspetivas atribuídas à área do design especulativo dificulta a tarefa de apresentar uma definição holística relativamente à temática. As diferentes nomenclaturas conferidas a este tipo de design incorporam o ceticismo, o olhar crítico e de pretensão reflexiva que Dunne (2005) e Dunne & Raby (2013) incorporaram no design crítico. Sendo o design especulativo uma forma de colocar em prática a crítica no design, as diferentes nomenclaturas que surgem para a renomear esta prática, partem sempre dos mesmos princípios basilares. No presente capítulo serão abordadas as diferentes terminologias associadas a esta área do design, que compreendem quatro nomenclaturas diferentes, mas que partem quase todas dos princípios fundados por Dunne (2005) e Dunne & Raby (2013): a) design especulativo - Dunne & Raby (2013) como fundadores e Auger (2013) Mitrović (2015) como precursores; b) design associativo – aplicado por Marino Gamper (2007) e cunhado por Malpass (2013) e; c) design discursivo – difundido por Tharp & Tharp (2015 e 2013), Bardzell & Bardzell (2013) e Sanders & Stappers (2014); d) design fiction – cunhado por Bruce Sterling (2005) e desenvolvido por Bleecker (2009). Malpass (2017) e Johannessen (2017) destacam-se devido à forma como engendraram formas de classificar, categorizar e organizar as premissas pelas quais alguns dos tipos de design mencionados operam. Almejando a clarificação destes conceitos e posterior definição da sua área de ação, o presente capítulo encarrega-se de criar uma amálgama expositora do conceito polissémico design especulativo, bem como a criação de um breve paralelismo entre a ficção científica e esta área do design por forma a que se possa entender o aparecimento do design fiction. Além disso, pretende-se ainda exibir as práticas, metodologias de ação e esquemas de aceção que circunscrevem estes tipos de design. Para os autores supramencionados, as diferentes formas de nomeação desta área do design, apresentam o mesmo objetivo, que se caracteriza pela [utilização] do design especulativo para descrever [um tipo] de trabalho que utiliza o design (produtos, serviços e cenários) para enfrentar desafios e oportunidades do futuro. Olhar para 5 a 10 anos no futuro e especular acerca de como as coisas podem vir a ser e se queremos ou não esse futuro (...) (Balagtas, 2016). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 22 2.1 Design Especulativo Dunne & Raby (2013), consideram que o alargamento da área de ação do design crítico ao campo especulativo “(…) desafia suposições, preconceitos e informações preconcebidas em relação ao papel que os produtos desempenham na nossa vida quotidiana” (p.34). Esta definição, fundou o design especulativo bem como demostra que a sua base conceptual continua a rebuscar ideologias presentes no design crítico. Contudo, Dunne & Raby (2013) assumem que esta definição “(…) é mais uma atitude do que outra coisa qualquer, uma posição em vez de uma metodologia” (ibid.). O autor que melhor explicita o percurso no design que culminou no surgimento do design especulativo, é Malpass (2017) ao afirmar que (…) [a] especulação e a proposição são uma tática central na prática do design critico. (…) O design especulativo como uma forma especifica da prática do design critico, preocupa-se com as áreas socio-científicas e sociotécnicas (…) (Malpass, 2017, p. 56). Aplicando as áreas sociais e científicas no domínio do design de produto, reside a preocupação dos designers sobre a forma como as tecnologias, por vezes, ignoram os contextos sociais (Malpass, 2017, p.56). Tendo como base conceptual esta preocupação, os designers especulativos abordam a questão contextual em que uma determinada tecnologia é transformada num produto, aferindo a forma como essa tecnologia pode modificar a experiência humana (ibid.). Segundo Malpass (2017), o design especulativo pergunta, portanto, porque é que devemos adotar certas ciências e tecnologias emergentes, e que potenciais implicações podem advir dessa mesma escolha (p. 56). O design especulativo funciona de duas formas: primeiramente como prática, em que coloca os avanços científicos e tecnológicos num contexto doméstico através da criação de protótipos tangíveis que tornam possível a visualização de tais avanços científico-tecnológicos num contexto futuro; segundo, é uma forma de “reimaginação”12 do presente tecnológico (ibid.). O design especulativo não se preocupa com as tendências que o progresso tecnológico percorre, preocupa-se, pois, com a variedade de possibilidades tecnológicas e com o caminho do progresso que escolhemos (ibid.). Independentemente dos contornos e enfoques pelo que o design especulativo se cinge, é importante reter a ideia que o design especulativo é uma prática proveniente do design crítico, uma ramificação da crítica no design e uma das formas de se poder abordar as preocupações dos designers em relação à emergência das novas tecnologias e à ciência. As diferentes designações de design especulativo que vão ser elencadas neste capítulo, necessitam da contemplação do manifesto “A/B”, correspondente à figura 7, e da figura 12 Em inglês a palavra grafa-se “reimagination”, porém não existe uma apropriação correta para a sua tradução, daí a que a palavra tenha sido adaptada no seu sentido literal. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 23 “PPPP”, correspondente à figura 8, de Dunne & Raby (2013), por forma a que se atinja um entendimento claro e preciso da ideologia subjacente a esta vertente do design crítico. O manifesto “A/B” de Dunne & Raby (figura 7) representa dois mundos diferentes no design. A tabela “A” é caracterizada “(…) pelo design como é geralmente entendido (…)”, enquanto a “B” indica o tipo de ideais que a dupla de designers pretende incorporar no seu trabalho (Dunne & Raby, 2013, p.vi). Os designers britânicos pretendem criar conexões entre ideias normalmente díspares, localizando-as dentro de uma noção expandida da prática do design contemporâneo (ibid.). Esta abordagem, pretende ir para lá das definições convencionais de design conceptual, ambicionando a utilização do design como catalisador para “social dreaming”13 (ibid.). Dunne & Raby (2013) reconhecem que grande parte do design que se desenvolve nos dias de hoje é caracterizado pela coluna “A” e que deve continuar a ser executado, visto que o design especulativo não tem como propósito substituir o design tradicional, mas sim equilibrar o universo do design para que esta área não se torne unidirecional (Johannessen14, 2017, p.4). Ao adotarem uma postura crítica, inquisitiva e apta para “encontrar problemas”, Dunne & Raby (2013) introduzem a especulação como: uma atividade cujo a conjuntura é tao boa como o conhecimento, onde cenários futurísticos e alternativos transmitem ideias e onde o objetivo é enfatizar as implicações humanas em decisões descabidas (2013, citado em Johannessen, 2017, p.4). 13 Expressão inglesa que significa em português “sonho social”. A expressão não foi traduzida por não conseguir exprimir o seu significado total. 14 Designer norueguês que estudou design industrial na Norwegian University of Science and Technology (NTNU) entre 2012 e 2018. Figura 7 - Manifesto A/B (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. vii). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 24 A figura 8, intitulada de “PPPP”, apresenta os quatro tipos de hiatos temporais onde o design pode operar, dos quais surgem definições avançadas por Dunne & Raby (2013) e Bland & Westlake (2013): Futuros Possíveis – Envolve tudo aquilo que pode acontecer, desde a warp drive15 do Star Trek até aos carros voadores, é somente reduzido aos limites da ciência e conhecimentos da física (Bland & Westlake, 2013, p. 9); Futuros Plausíveis - Futuros que poderão acontecer, tendo em consideração o conhecimento científico, tecnológico, industrial, social, humano e biológico que possuímos. Este cenário não se circunscreve apenas à previsão, mas sim à exploração de alternativas (Dunne & Raby, 2013, p.4); Futuros Prováveis - Este tipo de futuro pode definir-se por aquilo que, muito provavelmente, vai acontecer, a não ser que alguma mudança drástica como serve de exemplo a crise económica de 2008, altere o paradigma (p.3); Futuros Preferíveis - Intersectando os futuros plausíveis com os prováveis, surgem os futuros preferíveis. Normalmente, este tipo de futuro está sob a alçada dos governos e da indústria apesar dos cidadãos exercerem o seu papel de eleitores e consumidores. Em todo o caso, o poder de decisão do público nos futuros preferíveis, é residual. (p.4); Segundo Dunne & Raby (2013), o “futuro preferível” é onde o design especulativo gosta de operar. Não tem como ambição prever futuros nem palpitar qual será a nova tendência, mas 15 Forma utópica de viajar no espaço que consiste na dobragem do universo e consequente abertura de um wormhole (buraco intrauniversal) na prega dobrada que permitiria atravessar uma secção universal em pouco tempo. Link para consulta: https://www.space.com/20881-wormholes.html Figura 8 - PPPP: Cone do Futuro Preferível (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 5). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 25 objetiva a expansão de possibilidades a outros tipos de futuros. O design, neste caso, pode ser utilizado como catalisador para debate, oferecendo aos cidadãos um lugar na esfera pública, abrindo-se a possibilidade de se definir coletivamente um futuro comunitário (pp. 2- 6), tal como Simon (1996) já almejava. O design especulativo encoraja o utilizador a reconsiderar como o presente vai transformar o futuro, ou seja, de que forma a tecnologia e a ciência estão a ser introduzidas na cultura material do nosso dia a dia e de que maneira elas nos vão afetar. O design especulativo opera, portanto (…) num espaço ambivalente; normalmente encontra-se concentrado na domesticação de áreas promissoras da ciência e da tecnologia. (…) está ligado ao futuro, à criação de cenários e à investigação científico-tecnológica. (…) visa empregar o trabalho realizado em laboratórios, aplicando-o em contextos quotidianos (Malpass, 2017, pp. 100-101). Por forma a que a mensagem de Malpass seja passada, o seu contexto de utilização tem que estar inserido em ambientes familiares e domésticos, em que a exaltação e o exagero tecnológico estão presentes (ibid.). Ao invés de apresentar cenários de utilização utópicos ou distópicos, o design especulativo prefere operar em contextos que sejam familiares ao cidadão, daí a que esta prática também se denomine por “futuros mundanos” ou “presentes alternativos” (ibid.). Na construção destas narrativas, o designer tem que empregar mecanismos de satirização, distorção e principalmente de alegoria, para que a sua mensagem seja interiorizada pelo público (ibid.). Apesar da pretensão do designer ser o entendimento e a reflexão pública, James Auger teve a confirmação que se não existir um equilíbrio entre o que é reconhecido (conhecimento empírico) e o que não é (estrangement ou uncanny), o público pode ficar alojado numa “área cinzenta” onde as elações que retiram não estão entrosadas com a temática abordada. Para Auger (2013) a barreira que circunscreve a temática é dilatada, considerando que o “(…) design especulativo não só encoraja a contemplação no futuro tecnológico, como também pode providenciar sistemas analíticos, criticando e repensando a tecnologia contemporânea” (p.2). Auger (2013) categorizou as formas de “speculative practice16”, separando a prática em dois grupos: a primeira, refere-se à forma como os produtos oriundos do design especulativo podem atuar como papel de tornassol17 cultural, podendo também testar a potencialidade de produtos e serviços antes de existirem (p.2); a segunda, é alusiva à utilização dos “presentes 16 O design especulativo pode assumir várias formas de atuação, daí a que possa ser apelidada de “práticas especulativas”. 17 Indicador solúvel em água que determina o pH de um líquido, podendo ser ácido., básico ou neutro. Link para consulta: https://en.wikipedia.org/wiki/Litmus Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 26 alternativos” como propostas de design que descontextualizam a utilização de tecnologia contemporânea, através da aplicação de ideologias e configurações diferentes daquelas que são assumidas pelos consumidores (ibid.). O sucesso ou insucesso de um projeto de design especulativo é mensurável através da gestão da especulação: se se distanciar muito do presente, o que é exposto pode não ser reconhecido pela audiência, fruto de um fosso conceptual entre o que a audiência entende e o que o designer pretende abordar; se se aproximar muito da realidade, o público não consegue incorporar a crítica implícita, podendo interpretar o projeto por um exemplo comum, mundano ou que retrata a realidade (ibid.). Esta lacuna pode ser preenchida através de técnicas que liguem o público e o designer, às quais Auger (2013) denomina por bridging techniques18. Uma das técnicas é a a) abordagem ecológica, considerando que o designer deve analisar o meio e o contexto envolvente e circunscrever o local específico onde os produtos vão estar alocados enquanto a outra é a b) subversão histórica, onde se altera o desfecho de um acontecimento histórico de relevância. O sucesso desta etapa pode vir a auxiliar a consolidação do conceito numa realidade familiar ou lógica para o público, sendo que os objetos de design especulativo têm que estar enquadrados num contexto social, político, cultural, ou de maneira a que o processo de familiarização seja imediato (pp. 2-4). Exemplo da técnica a) – abordagem ecológica O projeto Afterlife (figura 9) de Auger e Loizeau (decorrido entre 2001 e 2009) exemplifica as dificuldades que ocorrem quando se tenta introduzir um objeto futuro no presente doméstico da população. O conceito principal do projeto, centrava-se na utilização da energia libertada durante o processo de decomposição das células humanas e consequente apropriação dessa dissipação energética para o carregamento de bateiras celulares secas. 18 Não existe uma tradução completamente correta para este termo, mas pode ser entendida por técnicas de “unificação”. Figura 9 - Caixão Afterlife (Retirado de Auger, 2013, p. 6). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 27 Aquando da exposição Design and the Elastic Mind (07’) no New York Museum of Modern Art (MoMA), os espetadores ignoraram o aspeto reflexivo do Afterlife, contestando somente adulteração de corpos de entes queridos (Auger, 2013, p.5-9). Os espetadores reagiram com estranheza a este tipo de abordagem, daí que a narrativa condutora e a gestão da especulação sejam um fator imprescindível nesta área (ibid.). Em 2009, os autores do projeto Afterlife foram convidados para exibir o seu projeto na 09’ ExperimentaDesign (EXD) uma bienal internacional dedicada ao design que tomou lugar em Lisboa, Portugal. Desta vez, apresentaram o projeto de uma forma mais convencional, perguntando aos espetadores onde e em que circunstâncias gostariam que fossem utilizadas as baterias que os seus corpos carregariam após o seu falecimento (pp. 5-9). A alteração da abordagem foi evidente, o que resultou numa resposta muito mais empática por parte do público. As elações retiradas pelo público foram ao encontro da principal pretensão dos designers: estimular a reflexão social. No que diz respeito à informação retirada do projeto, o público “aplicaria” a energia dos seus entes queridos em pilhas para comandos de televisão ou aviões remotos por exemplo, podendo perpetuar e materializar a ideia dos falecidos. Exemplo da técnica b) – subversão histórica A outra técnica utilizada refere-se à utilização de mecanismos utópicos e distópicos como forma de subverter um acontecimento histórico relevante que tenha alterado o paradigma mundial da altura (pp.4-6). Isto é, apropria-se de uma ocorrência significativa (como por exemplo o crash da bolsa de valores de Nova Iorque de 1929) e altera-se o desfecho que é conhecido. Esta técnica apresenta-se como “presentes alternativos” e destina-se a questionar o caminho que a tecnologia tomara, caso o evento histórico em evidência tivesse sido diferente (pp.4-17). Os exemplos elencados até aqui servem para demonstrar que as técnicas inerentes à “prática especulativa” são um veículo eficaz para alcançar a reflexão social. Esta reflexão somente pode ser alcançada devido “(..) à remoção dos constrangimentos comerciais que normalmente dirigem o processo criativo” (Auger, 2013, p.22). O design especulativo resume-se, portanto, à criação/materialização de uma conjetura hipotética, maioritariamente social ou tecnológica, que testa aquilo que a população “quer” ou “não quer” no futuro (p.22). Com o alargamento do espectro de atuação do design especulativo para o domínio cultural, social, étnico e tecnológico, o design especulativo, assume-se como a materialização do exercício crítico que está diretamente relacionada com uma série de práticas que adotam nomenclaturas diferentes, mas que partilham o mesmo principio de reflexão crítica (Mitrović, 2005, p.11). Para o investigador de design Ivica Mitrović (2015), o design especulativo é uma prática discursiva, assente no pensamento crítico e no diálogo, que questiona a prática do design e a sua definição contemporânea (p.11). Esta prática viu o seu campo de ação alargado Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 28 aquando da introdução de métodos que contemplam a imaginação e a criação de cenários alternativos (ibid.). Apesar de tudo, grande parte dos exemplos que são considerados design especulativo por investigadores não são reconhecidos como tal pelos autores dos projetos, visto que o conceito é relativamente recente (pp. 11-15). À semelhança do que outros autores fizeram, Mitrović (2015), desenvolveu uma “fórmula” de aplicação do design especulativo, afirmando que a sua prática pode ser cingida em dois conceitos básicos: especular sobre possíveis futuros ou projetar um presente alternativo. O autor croata explica que: Especular acerca do futuro gera cenários futuros que, criticamente, questionam o conceito “desenvolvimento”, a implementação e uso das novas tecnologias e as suas implicações sociais [enquanto] o conceito de um presente alternativo refere-se à criação de realidades tecnológicas urbanas paralelas (Mitrović, 2015, p.19). As abordagens típicas do design tradicional podem, portanto, ser adaptadas ao design especulativo e crítico como é o caso do modelo de investigação “Double Diamond” (figura 10). No que diz respeito a este modelo, pode-se aferir que o diamante à esquerda (“fase da descoberta e da definição”) diz respeito à investigação, à produção de ideias, conceitos e âmbito em que se vai inserir, contrariamente, o da direita (fase de desenvolvimento) refere- se à materialização e ao desenvolvimento do conceito, aos materiais utilizados, às técnicas e instrumentos bem como os métodos aplicados, enquanto a outra metade (fase de entrega) corresponde à materialização, à explicação, à forma como comunica, à apresentação (ibid.). Este modelo foi utilizado por Mitrović (2016) para nomear várias fases de projetos desenvolvidos, enfatizando o facto da ficção científica aplicada ao design (design fiction) ser Figura 10 – Modelo Diamante Duplo: “Prática do Design Especulativo mapeado pelo processo de design tradicional” (Retirado de Mitrović, 2016, p. 36). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 29 o género de design mais utilizado aquando do desenvolvimento de conceitos especulativos (p.37). 2.2 Design Associativo A par das definições anteriormente abordadas sobre design especulativo e design crítico, Malpass (2013) considera o design associativo como outra forma de se aplicar o exercício crítico, cunhando-o como uma prática caracterizada por subverter expectativas do quotidiano (…) o design associativo atua como um veículo crítico que, de forma recreativa, tenta desconstruir as matrizes tradicionais, conceptuais, culturais e principalmente profissionais, inerentes ao processo de materialização (Malpass, 2013, pp.337-338). Assistido pelo entendimento convencional e imediato dos objetos, este tipo de design conta com formas e tipologias familiares ao utilizador, de maneira a apresentar um objeto subvertido do seu contexto de utilização que, em última instância, torna-o estranho ao público (Malpass, 2017, p. 93). Esta prática está altamente povoada por objetos de decoração, nomeadamente cadeiras, mesas e iluminação devido ao facto de apresentarem uma forma que o público reconhece automaticamente (ibid.). Ao surgirem com uma aparência distinta, os objetos de design associativo surgem com uma configuração diferente das outras práticas, nomeadamente no que concerne à inexistência de uma narrativa que conduza o espetador, bem como uma forma “mais-racional” e funcional quando é comparado com os objetos oriundos do design especulativo e crítico (ibid.). O trabalho de Martino Gamper, por exemplo, é caracterizado pelo carácter assertivo no que diz respeito à utilização dos materiais, pela resistência ao product styling e pela espontaneidade e colapso do processo de criação industrial de uma cadeira (ibid.), que através de técnicas de hibridização material e de bricolage, criou o seu projeto 100 chairs in 100 days19 (Malpass, 2013, pp.337-338). 19 Projeto que consistia na criação de uma cadeira por dia no espaço de cem dias, daí o seu nome “100 cadeiras em 100 dias”. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 30 Figura 11 - Projeto "100 Chair in 100 Days" de Martino Gamper (Martino Gamper, 2005-2007). Figura 12 - Projeto "100 Chairs in 100 Days" de Martino Gamper (Retirado de Martino Gamper, 2005-2007). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 31 2.3 Design Discursivo Os autores norte-americanos, Tharp & Tharp (2015), consideram que a área do design que é subjacente a todas as definições até aqui elencadas não é o design crítico de Dunne (2005) que lidava, especificamente com produtos eletrónicos, mas sim o design discursivo. O design discursivo, incide sobre "(...) o intelecto (…) o objetivo principal é promover a reflexão, espoletar a imaginação e fomentar a contemplação, para (...) fazer com que o cidadão pense" (Tharp & Tharp, 2015). Sendo dos principais impulsionadores desta área do design, os autores ainda acrescentam uma visão mais incisiva acerca da taxonomia que este tipo de design deve acarretar, ao criarem uma metáfora acerca dos géneros e espécies no mundo animal, aclamando que o design discursivo é um género de design, e que as restantes temáticas (design crítico, design especulativo, design fiction, etc.) são espécies, ou subcategorias do design discursivo. Tharp & Tharp (2015) consideram (...) que o "design discursivo" representa o núcleo de todas estas formas e opera de forma mais eficaz se for considera como um género (...) o designer concebe um produto capaz de comunicar ideias. Mas estas não são quaisquer ideias, acarretam um peso psicológico, sociológico ou ideológico (...) (Tharp & Tharp, 2015). Os autores norte americanos enfatizam ainda que, como parte integrante do género design discursivo, (...) cada espécie partilha a mesma filosofia geral de uma conceção expandida do design de produto. Todas utilizam os artefactos [para chegar] ao intelecto, mas cada espécie difere de alguma forma, [quer seja] no método, na postura abordagem ou no efeito (Tharp & Tharp, 2015). A categorização que Tharp & Tharp (2015) criam é a que consegue plasmar com maior precisão todas as diferentes nomenclaturas conferidas à prática do exercício crítico, no entanto, a problemática que envolve a terminologia correta, continua. Para Bardzell & Bardzell (2013), o design crítico e especulativo fundaram as normativas éticas do design ao ambicionarem a emergência de valores ocultos à área, que poderiam reformar os ideais, as formas e os valores que estão alicerçados ao design dito “tradicional”. Mitrović (2015) introduziu esta abordagem ao conferir outra dimensão no espectro de atuação do design, contrapondo o design tradicional com o design especulativo, tal como se pode constatar na figura 13. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 32 Para Mitrović (2015) o design especulativo, é também uma prática discursiva que objetiva o pensamento crítico e o diálogo, cujo o fundamento principal é questionar a prática do design. Para o designer croata, esta abordagem dilata a área de ação inerente ao exercício crítico, justamente porque imagina e visiona possíveis cenários de utilização (Mitrović, 2015, p.13). Tharp & Tharp (2013) contribuem para circunscrição desta definição, ilustrando um quadro que introduz as diferentes definições que os produtos provenientes do design discursivo podem conter (figura 14). Figura 13 - Design Tradicional vs. Design Especulativo (Retirado de Mitrović, 2015, p. 9). Figura 14 – “Tipos de produtos discursivos” (Retirado de Tharp & Tharp, 2013, p. 409). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 33 Para Johannessen (2017), o eixo “Terminal” diz respeito aos “produtos discursivos” utilizados como catalisadores para debate, isto é, o trabalho do designer está terminado quando o produto é apresentado; já o eixo “InstrumentaI”, conta com a introdução de um produto que vai servir de ferramenta provocativa e que não necessita propriamente de ser funcional, pode apresentar-se como um produto conceptual, um produto (na sua aceção mais funcional) “inacabado” ou que transmite um conceito disruptivo, uma provocação. Qualquer uma destas definições pode operar na esfera pública (“External”) ou no debate entre designers (“Internal”), o também aclamado “design for designs sake”20 (pp. 4-6). Com a pretensão que as abordagens até aqui ilustradas possam ser colocadas e alinhadas no espectro operacional do design, recorre-se ao diagrama de Sanders & Stappers (2014), correspondente à figura 15. Os autores explicam os segmentos constituintes do diagrama, ao esclarecerem que no segmento da direita, design de serviço e design social são usados como manifestações da intenção de servir a comunidade. No meio, o "user experience", incorpora interação para conseguir chegar às pessoas. O segmento da esquerda, design interventivo e design crítico, pretende provocar ou “mexer” com as pessoas (Sanders & Stappers, 2014, p.13). No que concerne às camadas que constituem o diagrama, a central (de cor preta) refere-se ao design tradicional, a que lhe está mais próxima diz respeito ao “(…) mundo como ele é, [enquanto que] a seguinte camada refere-se ao futuro mais próximo e a última ao futuro especulativo” (Sanders & Stappers, 2014, p.14). Assumindo que que a camada exterior é o local onde o design especulativo opera, surge a necessidade de classificar e explicitar as 20 Este tipo de postura desenvolve abordagens preconcebidas no design que continuam em concordância com os parâmetros estabelecido, estagnando a possibilidade de o design sair da sua área de atuação. Figura 15 – “Movimentos do Design” (Adaptado de Sanders & Stappers, 2014, p. 13). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 34 etapas em que a sua prática se baseia. Apesar de Johannessen (2017) criar apenas um processo relativo à prática do design crítico e especulativo ao invés de criar duas distintas, a sua abordagem é bastante clara. A Speculative and Critical Design (SCD) practice21 é configurado em três fases distintas: a) Definir um contexto para debate; b) Idealizar e encontrar problemas e criar um cenário; c) Materializar o cenário para provocar a audiência (Johannessen, 2017, pp.9-10). a) definir um contexto para debate Tencionando que o exercício seja frutífero no seu estado final, importa definir o seu contexto. Por norma, os tópicos que envolvem esta etapa são atuais e costumam estar relacionados com problemas éticos criados pela indústria ou pela sociedade. A questão “(…) de que forma a sociedade está dependente da tecnologia?” é um exemplo de um potencial ponto de partida (ibid.). b) idealizar e encontrar problemas e criar um cenário O próximo passo é encontrar uma problemática. Para se explorar um tópico, a SCD practice utiliza várias questões “e se?” como tentativa de extrapolação, como servem de exemplo as perguntas “como é que este tópico se vai apresentar no futuro?” ou “de que forma se apresentariam os problemas inerentes ao tópico “X” se os paradigmas que os envolvem fossem alterados?”. Outra das formas de extrapolar uma problemática é através de argumentos do tipo reductio ad absurdum22 (ibid.). Pretendendo desenvolver estes problemas, o designer deverá adaptar as técnicas ao design especulativo, quer seja através da ferramenta brainstorm ou do método de design “Double Diamond” (ibid.). Esta etapa vai culminar na utilização de um de dois tipos de cenários possíveis: a criação de um presente alternativo ou a especulação de um futuro (ibid.). c) materializar o cenário para provocar a audiência A última etapa do processo é a materialização de um cenário de utilização, quer seja através de uma narrativa, de um objeto ou de ambos (Johannessen, 2017, pp.9-10). Se for utilizado um objeto, há que atentar ao seu formato, pois este pode apresentar-se como físico ou digital, mas não necessita de ser real ou funcional desde que aparente características de veracidade (ibid.). No entanto, para que atinja o realismo pretendido ele deve apresentar um nível de detalhe suficientemente forte para conseguir arrebatar uma reação pública (ibid.). Por outro lado, se a narrativa for escolhida, ela deve adotar pelas técnicas encontradas nos filmes e séries que reúnem as condições necessárias para cativar a atenção do público (ibid.). 21 Traduzido para a língua portuguesa refere-se à prática de design crítico e especulativo. 22 Este tipo de argumento foi largamente explorado por Jonathan Swift na sua obra A Modest Proposal (1729) onde o satirista anglo-irlandês sugere que se comam crianças pobres em resposta às elevadas despesas que o governo e os pais das crianças tinham em relação a esta faixa etária. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 35 Estas narrativas podem tomar a forma de documentários, vídeos comerciais, vídeo-blogs entre outros (ibid.). Por forma a mapear os conceitos elencados até aqui Johannessen (2017) apresenta um mapa, presente na figura 16, que ajuda a compreender e localizar as práticas inerentes ao design crítico e especulativo, independentemente da configuração final apresentada (objeto ou narrativa) ou e em que hiato temporal se insere (presentes alternativo ou futuros especulativos). Ao longo deste subcapítulo foram várias as denominações, metodologias e práticas conferidas ao termo design especulativo. Os anexos 1 e 2 podem auxiliar a cimentar as ideias principais inertes ao design crítico, especulativo e associativo. Malpass (2017) criou uma taxonomia que ilustra a relação entre os tipos de prática, os métodos mais indicados de utilização, o tipo de ambiguidade, de racionalidade para com o objeto e o género de sátira de cada tipo de design (p. 118). Para Malpass (2017) existem dois tipos de sátira: a Juvenalian e a Horatian (p.113). A juvenalian satire é frequentemente política, selvagem e direcionada; opera através de antítese, obscenidade e violência (ibid.). Já a Horatian satire é mais calma, atua através de técnicas paradoxais do coloquialismo, exagero e anticlímax (ibid.). A sátira, portanto, é outra das ferramentas que o designer tem à sua disposição, apesar de ser um atributo difícil de imprimir no seu trabalho. Ainda assim, os designers têm sempre disponível a utilização da (...) sagacidade como um instrumento que proporciona uma reflexão crítica e faz espoletar a audiência através do humor. Desta forma, a prática do design critico evidencia os vícios, abusos e as deficiências no design de produto ortodoxo, enquanto ridiculariza os desenvolvimentos científicos ou as condições socioculturais (Malpass, 2017, p.113). Figura 16 - Mapa ilustrativo da SCD practice (Retirado de Johannessen, 2017, p. 10). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 36 2.4 Design Fiction Outra das nomenclaturas que o design especulativo pode assumir é design fiction23. O termo design fiction foi largamente explorado por Bruce Sterling na sua obra Shaping Things (2005), no entanto a sua definição foi sintetizada numa entrevista que deu à Slate Magazine em 2012 conduzida por Torie Bosch (2012). Na entrevista, Sterling define design fiction como a “utilização deliberada de protótipos diegéticos para suspender a descrença sobre mudança” (Bosch, 2012). Apesar do cunho de Sterling (2005), Bleecker (2009) é que dinamizou o conceito e lhe conferiu outras dimensões, motivo este que justifica o decalque desta temática segundo este autor. O designer aproximou a área do design à ficção científica, através da análise de conteúdos proveniente da cultura cinematográfica de ficção científica. Relacionando a forma como os objetos diegéticos podem ser um valioso contributo para a science fact24, Bleecker (2009) conduz a sua investigação com a pretensão de comprovar que as propriedades inerentes à ficção científica são por vezes alteradas pelas propriedades da “ciência factual”, facto este que demonstra que o design fiction está presente neste processo. Segundo Bleecker (2009), design fiction é uma “(…) confluência entre design, ciência factual e ficção científica (…) é um tipo de prática que recombina a tradicional escrita narrativa com a materialização de ideias em objetos” (p.7). Bleecker, ainda acrescenta que o design fiction é uma amálgama de práticas que em conjunto, dobram as espectativas do que cada coisa faz e junta-as em algo novo. É uma forma de materializar ideias e especulações sem a redução pragmática que por vezes acontece, quando são atados pesos mortos à imaginação (Bleecker, 2009, p.7). De acordo com Bleecker (2009) a ficção científica trata-se de um género literário que através da narrativa cria protótipos de outros mundos e experiências de outros contextos com base na capacidade imaginativa e criativa intrínseca ao autor, permitindo aos objetos de design, poderem ser entendidos da mesma forma (p.7). Os objetos de design fiction podem ser contemplados como artefactos que atuam como um testemunho de um futuro possível, de uma história. São totens de outra realidade, objetos que narram um possível paradigma futuro, são acessórios que utilizaremos daqui a duzentos anos (ibid.). 23 Esta expressão não tem uma tradução correta, no entanto pode ser adaptada para “design ficcional” ou “design de ficção”. Almejando que o termo seja aplicado fluentemente, esta expressão vai ser utilizada sempre no seu idioma nativo. 24 Ciência factual. Área da ciência mais inflexível, que segue normas e fórmulas exatas (Bleecker, 2009, p. 8) Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 37 Este tipo de abordagem no design permite explorar diferentes perspetivas no processo de criação, pois as restrições típicas do design tradicional (sociais, industriais e principalmente económicas) não estão presentes, porque afinal de contas, criam-se mundos novos e nesses mundos o designer é livre. O design fiction é, portanto, uma área altamente flexível e aberta a novas abordagens, que tem como propósito criar provocações, levantar questões e explorar formas alternativas para especular como se irá apresentar o futuro, contendo sempre uma perspetiva crítica e interrogativa (ibid.). O design fiction preocupa-se com a exploração de possíveis futuros e com a criação de mecanismos de reflexão ao invés de encher o mundo com mais produtos, iguais a tantos outros, que somente têm como objetivo colmatar a procura dos consumidores e gerar lucro. (Bleecker, 2009. p.8). Para o autor, o design fiction encontra-se entre a “(…) arrogância da ciência factual e a postura recreativa da ficção científica, desenvolvendo ideias reais e falsas ao mesmo tempo (…)” (ibid.). Bleecker, reforça os ideais que guiam o design fiction, afirmando que Este tipo de design é uma prática porque não reivindica autoridade e não tem qualquer tipo de interesse em verdades canónicas; pode operar com o vernáculo e com o pragmático porque a sua definição contempla “pessoas” e não “utilizadores”; trabalha com paradoxos e com posturas críticas. Não assume algo sobre o futuro, exceto que podem existir múltiplos e simultâneos (Bleecker, 2009, p.8). A narrativa de Philip K. Dick Minority Report (2002) situada em 2054, demonstra que existem fatores inerentes à condição humana que são imutáveis e que justamente por este fato, existe um departamento policial especializado em pré-crime. Numa das cenas mais emblemáticas do filme, o personagem principal John Anderton, através de umas luvas que o obrigam a utilizar uma panóplia de gestos, surge a ajustar, manipular e editar um conjunto de informações de uma base de dados, com a finalidade de desvendar o autor de um crime. Uma curiosidade acerca deste episódio é o facto de Anderton necessitar de umas luvas para tratar de informação (data) e que faz com que o espetador reflita acerca desta temática. O que é de facto relevante para a temática do design fiction é a forma como Spielberg materializou a narrativa de K. Dick. A audiência conseguiu imaginar aquele futuro, adaptou-o para a sua existência e preocupou-se com um possível futuro (Bleecker, 2009, p.36-38). Bleecker (2009) diz mesmo que este tipo de entendimento só é possível porque o público privilegia o drama humano em vez dos objetos, o público quer saber de que forma este tipo de tecnologia vai interferir com o nosso quotidiano, não se interessa necessariamente com a forma que o futuro vai tomar (p.37). O Minority Report serve de suporte para a troca de propriedades entre a ciência factual e a ficção científica a que Bleecker se refere, “a ação pela qual a ciência cinematográfica alterna entre facto e ficção (p.37). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 38 Afastando-se do campo cinematográfico, um dos projetos de design que incorpora as premissas trazidas até aqui por Bleecker (2009) e Freedman (2000) é o Blackbox de Tiberio & Imbesi (2017). A premissa principal do projeto é a problemática da privacidade intrínseca ao avanço tecnológico: “(…) as pessoas, involuntariamente, sacrificam a sua privacidade para providenciar informação sobre eles próprios” (Tiberio & Imbesi, p. S3707). Blackbox, ilustrado na figura 17, é um dispositivo que tem a capacidade de processar, interpretar, entender e recolher experiências, eventos e factos, mantendo em segurança as memórias comuns e quotidianas, bem como as mais secretas (ibid.). Tendo por base conceptual o facto das novas tecnologias prestarem um precioso auxilio à memória humana – relembrando-nos de dias de aniversário, de datas importantes ou de viagens que já fizemos – Blackbox é “(…) um dispositivo narrativo com um núcleo de inteligência artificial. (…) é um robot (…) que possui funções como reconhecimento de fala, aprendizagem e resolução de problemas” (p. S3710). Este dispositivo diegético mantém as memórias seguras do utilizador e estas só podem ser acedidas através da leitura de um código QR25 tatuado no pulso em tinta ultravioleta (UV) que consequentemente é lido pelo dispositivo (ibid.). Cada aresta do cubo tem uma função específica: Na frente está um microfone para o reconhecimento da fala e uma barra led que dá feedback quando a máquina fala (…) há também uma “superfície viva” que dá ideia que estamos a contactar com um organismo vivo (…) na parte traseira está um altifalante (…) do lado direito está uma câmara, uma impressora térmica e uma lâmpada UV para ler o código QR (…) do lado esquerdo está o visor da câmara (…) [e] no topo está um conjunto de rodas que servem para inserir a data de um dia que tenha memórias guardadas” ( Tiberio & Imbesi, 2017, pp. S3710- 3711).26 25 Tipo de código de barras desenvolvido para a industria automóvel japonesa em 1994. Consultado a 30.08.18, através de https://en.wikipedia.org/wiki/QR_code 26 Para aceder ao vídeo que demonstra estas funcionalidades, consultar o link: https://vimeo.com/236413410 Figura 9 - Projeto "Blackbox" criado em 2017 por Tiberio & Imbesi (Retirado de Tiberio & Imbesi, 2017, p.S3710). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 39 Blackbox é um projeto que se encontra alocado a um contexto distópico e futurístico da sociedade, onde a crítica impera e a proteção de dados e privacidade formaram o estímulo para a reflexão social. Através deste projeto, Tiberio & Imbesi (2017) esperam puder “(…) traçar um caminho alternativo para o mundo e aumentar a consciencialização sobre o nosso futuro (p. S3711). Exemplos como o Minority Report e Blackbox vão de encontro ao que Sterling (2005) diz acerca do assunto, relatando que o design fiction: faz mais sentido na página do que a ficção científica (...) design fiction pode ser mais prático, mais "mãos na massa". Sacrifica algum sentido miraculoso, mas move-se muito mais perto do calor brilhante do conflito tecno-social (Sterling, 2005, p. 30). Bleecker (2009) também partilha este ponto de vista, propondo o termo design fiction como forma de contemplar os objetos provenientes do seu exercício como catalisadores de uma ação reflexiva (p. 83). Para que este objetivo seja alcançado é necessário inserir estes objetos diegéticos em contextos do quotidiano que por sua vez estão alocados numa narrativa sobre o futuro (ibid.). Estas histórias precisam de ser tangíveis, isto é, têm que ser materializadas (filmes e séries) de uma forma sedutora e atraente para que o público possa refletir, nem que seja inconscientemente, acerca das temáticas do futuro mundo tecnológico. Apesar da referência à materialização de um conceito, Bleecker (2009) exalta que o design não tem como propósito desempenhar uma atividade, “(…) encontra-se simplesmente em caixas conexas de fluxos de processamento que fabricam coisas” e tem um objetivo muito mais profundo e humanístico: “fazer coisas para pessoas” (p. 83). Estes critérios podem ser alcançados através de um tipo de narrativa específica, que para Bleecker (2009), tomaria a forma de ficção científica justamente por acarretar características que inspiram, imaginam e especulam acerca de mundos vindouros (p.84). Para que isto aconteça, é necessário que o design seja o impulsionador das temáticas que envolvem o próximo futuro e que necessita da “(…) união da ciência factual com a ficção científica” (ibid.). Esta abordagem encontra formas de relatar histórias livres de preconceitos relativos à forma como o mundo se vai adivinhar ou o que o mercado vai exigir (Bleecker, 2009, pp. 85- 86). O design fiction preocupa-se com a reflexão de um mundo habitável e os designers que se preocupam com estas temáticas tendem a explorar todos os mecanismos capazes de levar esta ideia às pessoas (ibid.). 2.5 Convergência e Divergência entre os conceitos As várias formas de aplicação da crítica no design, expostas durante este capítulo, podem ser sintetizadas em quatro grandes blocos: design especulativo, design associativo, design Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 40 discursivo e design fiction. Todas estas áreas adotam pelo design crítico como grande impulsionador conceptual, incorporando a sua postura cética, crítica e de pretensão reflexiva. Através da subversão, especulação e alternativa, estas práticas do design crítico almejam modificar informações, metodologias, mecanismos e estruturas preestabelecidas na sociedade e no design, bem como desafiam suposições e preconceitos, ao recorrem à concretização de uma crítica que plasme a preocupação, sobre a emergência das novas tecnologias e consequentes impactos no futuro de uma sociedade. Apesar de partilharem a mesma base conceptual, existem especificidades que diferenciam estes exercícios críticos. O design especulativo tem como objeto de estudo as consequências das novas tecnologias e dos avanços científicos. Ao apropriar-se dos progressos desta área, ele forja um exercício especulativo ou alternativo que depois é incorporado em futuros produtos alocados num contexto doméstico, pretendendo oferecer ao público a possibilidade de aferir o “que quer” e o “que não quer” para o futuro. Esta área está diretamente ligada à domesticação do futuro, à perspetivação e à criação de alternativas, podendo ainda conferir aos designers a possibilidade de conduzir investigações [dos progressos] que acontecem em laboratórios e aplicá-los [de imediato] (…) podendo explorar as suas possíveis aplicações (...) ao facilitar o debate acerca das implicações dos avanços científicos, o design pode rumar a um caminho mais prático, quase de índole social, e ao faze-lo desempenha um papel na democratização das alterações tecnológicas ao alargar a participação no debate sobre o futuro tecnológico (Dunne & Raby, 2013, p.49). Não pretendendo substituir o aclamado “design tradicional” (alusivo à coluna “A” da figura 7) e as conceções que o caracterizam, este tipo de design é mais uma postura em relação à forma como os trabalhos de design poderiam ser conduzidos do que um novo método. Desta forma, o design associativo é a materialização do exercício crítico no design de produto. Tendo como ponto de partida o ordinário conhecimento e familiarização com os objetos decorativos, este tipo de exercício crítico subverte as expetativas de um determinado objeto, associando vários conceitos numa só peça, fazendo com que a sua função seja adulterada. O design associativo diferencia-se das outras práticas por ser a única que não adota uma postura que pretende descodificar como se irão apresentar os produtos futuros, mas que opta por aglutinar objetos que reconhecemos de imediato, verificando-se uma clara intenção de agitar as conceções que a sociedade atribuí a certos objetos. O design discursivo, por sua vez, assume-se como uma área do design que tem como aspiração principal comunicar através do design. Através desta pretensão e almejando sempre que o público reflita sobre a forma como o futuro se pode vir a revelar, o design discursivo é uma área do design que se encontra a jusante do design crítico e especulativo (figura 12), precisamente por ambos tencionarem comunicar ou fazer passar uma mensagem através do Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 41 design. Independentemente do enfoque dessa comunicação, seja ela uma crítica social, tecnológica, cultural ou sobre o próprio design, o design discursivo utiliza as capacidades inerentes ao design para fazer chegar uma mensagem. Por último, o design fiction é a forma mais interativa e clara de colmatar todos os desejos e pretensões associados ao design especulativo e discursivo. Justamente por assumir uma componente narrativa, o design fiction tem a facilidade de ser absorvido e interpretado de imediato, porque se suporta em filmes e/ou séries televisivas. Os padrões de consumo cultural deste tipo de conteúdos têm a projeção que as outras áreas do design não têm porque entram pelas casas do público, ao invés de os fazer deslocar a uma exposição. Absorvendo as características da ficção científica, como é caso das narrativas e dos objetos diegéticos, e as bases conceptuais da teoria crítica, o design fiction consegue materializar ideias e críticas sobre o caminho que as novas tecnologias e a ciência estão a adotar, imprimindo-as em séries televisivas como é o caso de Black Mirror. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 42 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 43 Capítulo 3. Estado da Arte e Projetos de design especulativo O presente capítulo tem como objetivo primordial expor e analisar projetos criados no âmbito de design especulativo, tendo em conta as definições elencadas até aqui. Conduzir-se-á uma investigação onde se explorará as barreiras conceptuais que circunscrevem o design especulativo bem como a forma como é aplicado em projetos desta natureza. Este capítulo dirá respeito à reunião de projetos incontornáveis e emblemáticos no design especulativo bem como aqueles que revelam alguns problemas, criando sempre uma analogia entre as definições elencadas até aqui e a forma como foram introduzidas nos projetos. Nesta área do design, a deliberação acerca de como o mundo se vai apresentar parte de avanços tecnológicos e científicos que o autor presencia, especulando acerca das implicações sociais, económicas, políticas ou culturais provenientes da evolução humana. Este tipo de exercício não é de fácil cumprimento, sendo que os projetos maioritariamente apresentados são cenários domésticos de utilização destas inovações, faltando-lhe, por vezes, a dimensão crítica. Os projetos mencionados neste capítulo assumem-se como exemplos da prática do exercício especulativo no design e apesar de alguns ficarem aquém daquilo que caracteriza o seu modo de atuação, outros conseguem refletir todas as características idealizadas. As abordagens ao design que vão guiar a análise dos projetos, dividem-se em três tópicos complementares. O primeiro refere-se ao papel social que o design desempenha; o segundo diz respeito aos ideais em que este tipo de design se deve basear; por último, as características (no seu sentido mais prático) fundamentais que qualquer projeto de design especulativo deve conter, onde se reuniram as definições mais difundidas pelos autores, culminando numa categorização de seis elementos distintos: i) Postura cética, crítica e reflexiva; ii) Narrativa; iii) Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico; iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro; v) Capacidade de prospetividade27; vi) Liberdade económica e inutilidade técnica. A primeira diz respeito à definição de design e distanciasse das definições canônicas e complexas de Heskett (2005) ou de Flusser (2007), direcionando a 27 “Estudo das causas técnicas, científicas, económicas e sociais que aceleram a evolução do mundo moderno e previsão das situações que poderiam derivar das suas influências conjugadas.” Link para consulta: https://www.priberam.pt/dlpo/prospectiva Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 44 (...) utilização do design para abrir todo o tipo de possibilidades que podem ser discutidas, debatidas e utilizadas para se definir um futuro preferível coletivo para um determinado grupo de pessoas (...) [o design] pode gerar futuros que atuam como catalisadores para debate e discussão pública acerca dos tipos de futuro que as pessoas realmente querem (Dunne & Raby, 2013, p.6). Bleecker (2009), também concorda com este tipo de abordagem ao design, considerando que (...) tudo importa porque importamo-nos sobre imaginar e materializar futuro mundos habitáveis. Importamo-nos de tal forma que encontrar mecanismos para a criação destes mundos habitáveis, é realmente a nossa preocupação (...) porque o futuro é importante (Bleecker, 2009, p.86). O segundo tópico reflete as premissas da coluna B do manifesto A/B de Dunne & Raby (2013), que se assumem como outro elemento basilar para a análise de projetos no âmbito de design especulativo (figura 18). O último elemento constituinte que será utilizado para a análise que se vai desenvolver, surge na aglomeração de definições elencadas por vários autores. Para Dunne (2055) o design especulativo tem como função “(…) ser utilizado para encorajar uma reflexão” (p. 42), “(…) atuar como veículo crítico” (p. 66-67) ou “(…) fomentar a imaginação, colocando os espetadores num espaço de reflexão crítica” (p.89). Para Mitrović (2015), este tipo de design assume-se como a materialização do exercício crítico (p. 11), enquanto para Tharp & Tharp (2015), o objetivo principal é fazer espoletar uma introspeção. Para Malpass (2013), o designer utiliza a sua capacidade intelectual como “(…) um instrumento que permite a reflexão crítica e a estimulação da audiência (…)” (p. 113). Com as definições elencadas até aqui juntamente com a visão de design que Bleecker (2009) e Dunne & Raby (2013) fornecem, Figura 10 - Excerto da coluna "B" do manifesto "A/B" de Dunne & Raby. (Adaptado de Dunne & Raby, 2013, p. vii). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 45 pode-se considerar que o objetivo principal do design especulativo é ser utilizado como veículo de reflexão social. Considerando as barreiras conceptuais, as definições elencadas durante a dissertação e o objetivo que o design especulativo percorre, decidiu-se agrupar as suas aceções em seis características distintas: i) Postura cética, crítica e reflexiva; ii) Narrativa; iii) Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico; iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro; v) Capacidade de prospetividade; vi) Liberdade económica e inutilidade técnica. i) Postura cética, crítica e reflexiva Os projetos de design especulativo devem adotar uma postura cética em relação à emergência de novas tecnologias e do caminho que os avanços científicos estão a tomar (Bleecker, 2009). O olhar crítico que o designer deve sempre adotar, assume-se como uma das ferramentas essenciais aquando da contemplação do mundo em seu redor, podendo utilizar o design como “(…) gatilhos que auxiliem a construir mentalmente um mundo formado de ideais, valores e crenças diferentes das nossas (…)” (Dunne & Raby, 2013, p.91). Esta postura é partilhada por todos os autores elencados anteriormente, tendo sempre como objetivo comum aferir se a utilização do design especulativo é a melhor forma de fazer alavancar questões acerca do papel que os designer, cientistas e engenheiro podem desempenhar, na redefinição das condições sociais e futuro tecnológico (Malpass, 2017, p. 69). Outro fator que se assume como incontornável nesta secção diz respeito à forma como a crítica é apresentada ao público. A crítica, grande parte das vezes, é assimilada com maior facilidade se os gatilhos que fazem espoletar a reflexão social forem distópicos ao invés de utópicos, negativos em vez de positivos. Este tipo de abordagem denomina-se por dark design e define-se como um antídoto para a ingenuidade dos paradigmas tecno-utópicos (Dunne & Raby, 2013, p.38). Ao invés de oferecer um futuro tecnológico sorridente, promissor e que esteja sempre ao auxilio do ser humano, o dark design “(…) cria fricção que desafia e excita (…) está relacionado com o uso positivo da negatividade, como uma forma de chamar a atenção do público para uma possibilidade assustadora, relatada através de um conto preventivo (ibid.). ii) Narrativa A narrativa também assume um papel preponderante nesta área do design porque transporta o público para um contexto social e tecnológico diferente, adornado de desafios futuros que podem ser comtemplados como estímulos que impõem uma reflexão. Como Bleecker (2009) menciona, o público privilegia o drama humano e contempla a tecnologia apenas com o objetivo de aferir de que forma ela vai afetar o futuro (p. 37). A narrativa, no entanto, tem que ser engendrada pelo autor, por forma a que o público reconheça alguns aspetos e desconheça outros, fator este que se adquire através da gestão do estrangement e do Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 46 conhecimento empírico. Dunne & Raby (2013) declaram que estas narrativas partem da pergunta “e se …?” e têm a “(…) intenção de abrir um espaço para o debate e para a discussão; assim sendo, elas têm que, necessariamente, ser provocativas (…) e ficcionais” (p. 3). Este tipo de perguntas permite ao autor negligenciar parte da narrativa e do enredo, a fim de explorar uma ideia (p. 86). iii) Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico O projeto, já descrito no capítulo anterior de Auger e Loizeau (2001-2009) é o exemplo perfeito do que pode suceder se não existir uma gestão entre “o que o público não reconhece” – o estrangement ou uncanny- e “o que reconhece” (cognição). O fosso conceptual em que o público pode entrar quando não existe este equilíbrio, pode remeter ao incumprimento do objetivo principal de design especulativo. A importância desta harmonia é igualmente partilhada por Freedman (2000) e por Suvin (1979) ao defenderem que na criação de mundos ficcionais, impera a dialética. Ao ser utilizada como medida entre o uncanny e a cognição, a gestão da dialética vai permitir “(…) subverter as conceções atribuídas a um conceito” (Freedman, 2000, p.8). Desta forma, obriga o público a interpretar o novo contexto de utilização de um determinado objeto, “(…) suspendendo a descrença sobre a mudança” (Bosch, 2012) dos conceitos pré-concebidos. Esta característica prima pela apresentação de projetos semirreais porque o objetivo principal é fazer passar uma ideia, ao invés de se discutir os problemas técnicos inerentes a um produto finalizado (Dunne & Raby, 2013, p. 151). iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro O design especulativo, sobrepõem-se a outras abordagens emergentes do design, mas a que mais se aproxima dos seus termos é o design fiction (Dunne & Raby, 2013, p. 100). Tal como o design fiction, qualquer trabalho de design especulativo possuí um objeto diegético. Objetos diegéticos são objetos que por si só comunicam. São a materialização de uma ideia capaz de transportar o público para outra linha temporal. São signos de um presente alternativo ou de um futuro possível, caso sejam adaptados ao design especulativo. Os objetos de design especulativo para poderem transportar o leitor para desafios contemporâneos acerca da evolução tecnológica e consequentes implicações sociais, têm que estar enquadrados numa realidade que o público reconheça (Auger, 2013, pp. 2-4). Por forma a que o processo de familiarização seja imediato e que a ideia apresentada ostente semelhanças com a realidade que envolve o público, a alocação destes objetos em situações que retratem o quotidiano e a domesticação do futuro, são fatores extremamente importantes. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 47 v) Capacidade de prospetividade Outra das características fundamentais é a obtenção ou refinação de uma competência no design especulativo que se denomina por foresight (Bland e Westlake, 2013, p.17). Normalmente associado a uma habilidade especial que se desbloqueia no mundo dos videojogos, o foresight é um género de visão pan-óptica que quando é utilizada pelos designers, admite a observação das diferentes “forças” que movem o mundo, permitindo antecipar o resultado das suas ações congregadas. É uma capacidade imprescindível nos designers especulativos, porque de outra forma os mundos que criavam estavam muito perto da nossa realidade e o interessante é confrontar as pessoas com mundo tecnológico e social que está para chegar. vi) Liberdade económica e inutilidade técnica Almejando que os exercícios de design especulativo possam ser contemplados pelo seu conceito e não pela sua forma ou possível lucro que possam gerar, é importante remover os “(…) constrangimentos económicos que normalmente guiam o processo criativo” (Auger, 2013, p.22). Dunne (2005) considera que, para além da liberdade económica, se não existirem critérios de funcionalidade num objeto, este pode “(…) suscitar reflexões para lá do espectro técnico-funcional, (…) deslocando a atenção do consumidor para a função conceptual” (p.89) do objeto. 3.1 Análise e categorização de Projetos de Design Crítico 3.1.1 United Micro-Kingdoms Não se poderia falar de projetos de design especulativo sem mencionar o trabalho de Dunne & Raby. United Micro-Kingdoms (UMK) (2013) tinha como principal objetivo reinventar a Inglaterra do séc. XXI para um estado em que apenas existiam quatro sociedades distintas: os digitarians, os bioliberals, os anarcho-evolutionists e os communo-nuclearists (Dunne & Raby, 2013, p.174). Não podendo escrutinar todas as ramificações e áreas que envolvem uma sociedade, Dunne & Raby (2013) ingressaram num exercício especulativo cujo o enfoque eram os transportes de cada uma destas sociedades (ibid.). O gráfico que serviu de base para segmentarem a sociedade foi o Political Chart criado por Kellenberger-White (2013) para este projeto (figura 19). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 48 Digitarians Dependentes da tecnologia e suas consequências (monotorização, controlo, localização, armazenamento de dados, etc.), os digitarians são apologistas da transparência máxima dentro da sociedade. Governados por tecnocratas28, os cidadãos são considerados consumidores e a sociedade onde coabitam é inteiramente governada pelas oscilações do mercado. Deslocam-se através dos digicars, transporte este que não traduz a ostentação de status na sua aparência (carros serializados) e que se deslocam automaticamente. A natureza existe para servir os habitantes desta sociedade (Dunne & Raby, 2013, pp. 175-179). 28 Governadores que procuram soluções técnicas e objetivas sem ter em conta os aspetos sociais. Figura 11 - "Political Chart" (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 175). Figura 12 - "Digicars", CGI por Tommaso Lanza (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 177). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 49 Bioliberals Dunne & Raby (2013), definem esta sociedade como uma essencialmente constituída por agricultores, cozinheiros e jardineiros (pp. 180-182). Esta população persegue a biotecnologia e tem uma enorme consciência do impacto das suas ações na natureza, daí a que se desloquem em biocars - carros orgânicos movidos a biodiesel, leves, lentos e com dimensões que se adaptam a cada necessidade – forjados por tecido humano, ossos e excedentes restos mortais de uma pessoa (ibid.). Figura 13 - "Digicars", CGI por Tommaso Lanza (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 177). Figura 14 - "Biocars" (Retirado de Dunne & Raby, 2013, pp. 180-181). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 50 Anarcho-evolucionists Esta sociedade é caracterizada por ter abandonado quase todo o tipo de tecnologia a não ser aquela que é utilizada para maximizar as capacidades humanas, nomeadamente a mutação genética (aumento das pernas, quadris mais largos, cruzamento de raças animais para aumentar a utilidade de cada uma, etc.) (Dunne & Raby, 2013, 182-183). A responsabilidade pelo meio envolvente é assente na adaptação que cada individuo tem que ter para se enquadrar com a natureza, e nunca o oposto. A nível governamental, são bastante céticos, sendo que têm tendência a formarem grupos e a desenvolver as suas próprias regras (anarquismo) (ibid.). Esta comunidade não possuí meio de transporte e quando viajam, fazem-no em grupo através de transportes que eles próprios criam, como é exemplo da bicicleta comum (ou “Very Large Bike”) que assume a condição de objeto diegético (pp.182- 184). Figura 15 - "Anarcho-evolutionists" and "Very Large Bike" (Retirado de Dunne & Raby, 2013, pp. 182-183). Communo-Nuclearists Esta comunidade é limitada e não permite o crescimento da mesma. Deslocam-se num comboio em forma de paisagem de 3 km de comprimento, movido a energia nuclear (Dunne & Raby, 2013, pp.185-188). Com este tipo de combustível, o desastre é eminente para a população, apesar desta se manter disciplinada nas suas “montanhas-carruagens” onde podem desfrutar de ginásios, laboratórios, lagos de pesca comum, entre outros (ibid.). O governo providência tudo e a sociedade age como um microestado altamente disciplinado e organizado (ibid.). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 51 United Micro-Kingdoms (2013) é um projeto que se divide em quatro sociedades distintas acarretando, no mínimo, quatro críticas sociais. Os Digitarians são claramente uma crítica à nossa sociedade. A forma como se movem, como são governados e o tipo de controlo que o mercado detém sobre eles são um exemplo bastante fidedigno do que pode vir a ser a nossa sociedade. A subserviência, a vassalagem às grandes empresas e a ideia clara que são consumidores (≠ cidadão) são um excelente ponto de partida para uma reflexão acerca do nosso papel num mundo parcialmente automatizado, onde o único ser vivo capaz de parar o ritmo desenfreado do nosso planeta é aquele que o implementou – os seres humanos. Já os Bioliberals são o oposto dos digitarians. Regem-se pela social-democracia, perseguem a biotecnologia e com ela a procura de novos valores (Dunne & Raby, 2013, p.180). Com os tipos de transporte não-poluentes e ajustados à necessidade de cada um, juntamente com o facto de a sociedade ser constituída maioritariamente por profissionais que operam no campo e em áreas da natureza, a criação desta sociedade funciona como um manifesto acerca da forma como as empresas de transformação negligenciam os avisos dos especialistas relativos à poluição. Esta preocupação foi reiterada e tomou forma através da assinatura de quinze mil cientistas na revista BioScience em novembro de 2017, ao afirmarem que o mundo se encaminha para um tipo de “alterações climáticas potencialmente catastróficas devido ao aumento dos gases de estufa provenientes da queima de combustíveis fósseis”, enaltecendo que o ser humano desencadeou “(..) um evento de extinção em massa, o sexto em cerca de 540 milhões de anos, em que muitas formas de vida atuais poderão ser aniquiladas ou pelo menos ameaçadas de extinção quando chegarmos ao fim deste século” (Visão, 2017). Figura 16 - "Train", CGI por Tommaso Lanza (Retirado de Dunne & Raby, 2013). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 52 Movendo-se para o canto inferior direito do Political Chart de Kellenberger-White (2013), encontramos os Anarcho-Evolucionists onde podemos contemplar uma sociedade que desenvolve e utiliza a ciência para maximizar as capacidades humanas através de DIY 29 biohacking onde manipulam geneticamente espécies para, servirem de transportes à sociedade entre outras funções que possam desempenhar (Dunne & Raby, 2013, p.182). Este tipo de sociedade pode ser visto com um olhar crítico em relação ao caminho que a biotecnologia está a tomar, enaltecendo que a mutação genética está ao serviço do ser humano. A definição que Dunne & Raby (2013) conferiram à sociedade é, no entanto, curiosa: Eles [os Anarcho-evolucionists] acreditam que os seres humanos se devem modificar de maneira a que existam nos limites do planeta ao invés de o modificarem consoante as suas exigências (…) (Dunne & Raby, 2013, p.182). Apesar de não ser clara a posição que esta comunidade tem em relação à natureza, por dedução, existe uma preocupação à cerca da forma como o planeta está a ser utilizado. Partindo desta premissa, os cidadãos desta comunidade cruzam espécies domésticas distintas por forma a agruparem as qualidades intrínsecas a cada um, num só animal. Serve de exemplo o “pitsky” – o resultado do cruzamento genético entre um pit bull terrier e um husky - que têm como papel principal ajudar no transporte de pequenas cargas e defesa pessoal (p.184). Com o objetivo de puxar carruagens e auxiliar o ser humano no transporte de cargas pesadas, o cruzamento entre um boi (“ox”) e um cavalo (“horse”) dão origem ao hox (ibid.). Apesar da pretensão dos autores ser uma, é possível identificar uma problemática inerente a este recurso à mutação genética. Se a mutação animal persegue o objetivo construir uma “super-raça”, que converge várias qualidades intrínsecas e individuais a cada ser vivo, não será um contrassenso assumir a posição de “defesa” da natureza? Isto é, se o objetivo é alterar o corpo humano “(…) ao invés de modificar o planeta para atender às necessidades [humanas] crescentes” (Dunne & Raby, 2013, p. 182) não se continuaria a modificar o “planeta” para satisfazer as necessidades humanas? É que os animais domésticos continuam a fazer parte da amálgama orgânica (fauna e flora) onde estamos inseridos, daí a que esta abordagem pró-natureza não seja, de todo, transversal a todos as espécies que a constituem. Atualmente, o caminho da mutação genética está a dar os primeiros passos e pode ser verificada, maioritariamente, nas áreas que circunscrevem a medicina e o combate a vírus. A implementação de uma proteína que combate mais eficazmente o colesterol (“Apo-AIM”) ou a modificação do gene que é responsável pela densidade óssea (“LRP5”) são alguns exemplos 29 Abreviação em inglês que significa “Do-it-Yourself” ou em português “faça você mesmo”. Link para consulta: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/diy Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 53 da atuação da mutação genética30. Todavia, as capacidades humanas já estão a ser melhoradas e enaltecidas, não através de mutações genéticas, mas através de mecanismo exteriores ao nosso corpo, como é o caso dos exo-esqueletos. Estes dispositivos foram desenvolvidos pela Panasonic que em conjunto com a empresa ActiveLink objetivam auxiliar trabalhadores que lidam diariamente com cargas pesadas ou que desempenhem tarefas repetitivas (Knight, 2015). Estes mecanismos até já foram adaptados por empresas médicas que ajudam a reabilitar paraplégicos a voltar a andar como é o caso da ReWalk Robotics31 (figura 25). A empresa criada em Israel desenvolve sistemas biónicos de auxilio à motricidade humana, através de um sistema fixo às pernas de indivíduos que tenham mobilidade reduzida, como os paraplégicos. Por fim temos os Communo-Nuclearists, uma sociedade altamente disciplinada que se move num comboio movido a energia nuclear em forma de paisagem, onde o receio que os reatores nucleares possam explodir, delimite a vida dos seus passageiros e sirva de justificação à disciplina rigorosa imposta no comboio (Dunne & Raby, 2013, p.186). O comboio presencia dois fenómenos psicológicos distintos: por vezes, torna-se num palco hedónico com música alta e um ambiente festivo em movimento; mas grande parte das vezes, a comunidade que coabita nesta paisagem móvel procura o isolamento nos limites da civilização, “(…) longe dos efeitos prejudiciais do Antropoceno” (ibid.). Cada carruagem tem cerca de 40m de comprimento e 20 de largura, onde na segunda e na terceira carruagem está situado o reator (ibid.), tal como se pode observar na figura 26. 30 Link para consulta: https://bigthink.com/daylight-atheism/evolution-is-still-happening-beneficial-mutations-in- humans 31 Link para consulta: http://rewalk.com/ Figura 17 - Exo-Esqueleto da ReWalk Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 54 A forma como esta sociedade vive apresenta semelhanças com o thriller de ficção científica Westworld de John Michael Crichton, adaptado a uma série televisiva produzida pela HBO e criada por Jonathan Nolan, Lisa Joy e J .J. Abrams. A narrativa desenrola-se num mundo western, de cowboys, saloons, ladrões e assassinos que em conjunto formulam um parque temático fictício e altamente tecnológico povoado por androids (hosts), que por sinal, se assemelham bastante a seres humanos. Um género de parque jurássico com androids. Os guests (ou convidados) chegam a este mundo de comboio, onde os hosts (ou anfitriões), providenciam todo o tipo de ofertas aos seus visitantes, desde uma missão lendária à procura de um bandido de renome ou à simples tarefa de auxiliar um agricultor na apanha dos cereais, o objetivo principal deste parque temático é satisfazer todas e quaisquer necessidades dos convidados, por mais obscuras e negras que sejam. Os anfitriões nunca se vão lembrar de nada no dia seguinte, visto que são diariamente formatados, reconfigurados e reiniciados para recomeçarem o seu ciclo (ou loop) narrativo. Tal como no design especulativo, os objetos que adornam a série são diegéticos. O objeto responsável pela configuração dos hosts, por exemplo, assume a forma de um tablet desdobrável (figura 27). Figura 18 - Carruagem do reator nuclear. Link para consulta: http://unitedmicrokingdoms.org/train- comments/ Figura 19 - Tablet desdobrável que permite controlar os "hosts", exemplo de um objeto diegético em Westworld. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 55 Todavia, esta forma de escapar à realidade vem com um preço: conhecermo-nos. Quando estamos inseridos num paradigma onde qualquer ação desempenhada não tem consequências, até onde estaríamos dispostos a ir? É a este tipo de perguntas que Westworld consegue responder, esclarecendo que todos os atos têm consequências. O enredo ganha uma capacidade reflexiva louvável quando obriga o espetador a desdobrar a sua cognição e a colocar em causa o mundo que nos é facultado, tal como Dunne (2005) propõem a utilização do functional estrangement (ou para-funcionalidade) para apelar ao sentido crítico e cético do público. No comboio (figura 28) de Dunne & Raby (2013) a população, apesar de ser providenciada com tudo o que precisam, são prisioneiras voluntárias do prazer, da mesma forma que os convidados de Westworld são igualmente prisioneiros voluntários do prazer, mas inseridos num parque temático que vende a liberdade (figura 29). Figura 20 - Comboio, CGI by Tommaso Lanza (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 185). Figura 21 - Comboio que transporta os "guests" para o "Westworld". Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 56 3.1.2 Foragers Designs for na Overpopulated Planet, No. 1: Foragers, ou simplesmente Foragers (decorrido entre 2009-2010), é outro dos projetos de Dunne & Raby (2013) que consegue alcançar tudo aquilo que o design especulativo almeja. Como todos os projetos de design especulativo, partiram de um fator palpável e atual, que neste caso revela que O mundo está a ficar sem comida – precisamos de produzir mais 70% de alimentos nos próximos 40 anos, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). No entanto, continuamos a povoar o planeta em demasia, a gastar recursos e a ignorar todos sinais. É completamente insustentável (Dunne & Raby, 2013, p.151). A abordagem de Dunne & Raby (2013) parte da suposição que tanto o governo como a indústria não vão conseguir solucionar o problema e que grupos de pessoas vão ter que tomar medidas pelas próprias mãos (p.151). Como todos os exercícios de design especulativo, parte- se de uma questão “e se?”, E se fosse possível extrair nutrientes de alimentos não-humanos, usando uma combinação entre biologia sintética e novos dispositivos digestivos, inspirados nos sistemas digestivos de outros mamíferos, pássaros, peixes e insetos? (ibid.) Inspirados nesta ideia, Dunne & Raby (2013) desenvolveram e construíram dispositivos que atuariam como sistemas digestivos externos, que providenciavam a absorção de nutrientes a um ser humano, mesmo que os alimentos não fossem adaptados ao seu sistema digestivo. O projeto originou o desenvolvimento de ilustrações conceptuais (figura 30), a construção de objetos diegéticos (figura 31) e registos fotográficos (figura 32), que serviram como catalisadores para debate. Os autores evitaram o hiper-realismo no desenvolvimento de maneira a que os conteúdos pudessem ser contemplados como ideias e não como produtos finais (Dunne & Raby, 2013, p.151). Figura 22 - "Foragers" (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 150). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 57 Ambos os projetos conseguiram criar a reflexão social que o design especulativo almeja. Em Foragers, apesar de não estar completamente explícita a posição dos autores em relação ao estudo que a ONU lançou e que serviu como ponto de partida para o projeto, a verdade é que se conseguiu interpretar uma crítica intrínseca neste projeto: a quantidade excessiva de estudos estatísticos e analíticos que saem todos os dias. Segundo a notícia avançada por Domínguez (2017), jornalista do El País, Ioannidis – médico e investigador da Universidade de Stanford (E.U.A.) – em 2013 publicou um ensaio que comprova que cerca de 95% dos estudos Figura 24 - "Foragers", fotografia de Jason Evans (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p. 155). Figura 23 - "Foragers", fotografia de Jason Evans (Retirado de Dunne & Raby, 2013, p.154). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 58 que são lançados na área da ciência e da medicina “(…) podem ser falácias sem comprovação” (Alsheikh-Ali, Qureshi, Al-Mallah & Ioannidis, 2011). Os investigadores vão mais longe, relatando mesmo que os cientistas “acreditam no que veem, mas não existe uma forma de comprovar que está certo, para além disso não podemos usar esses dados porque se perderam” (Alsheikh-Ali, Qureshi, Al-Mallah & Ioannidis, 2011, citado em Domínguez, 2017). Esta consequência deve-se ao fato de existir uma falta de transparência nos dados, o que (…) lamentavelmente, não é descoberta científica, mas autoengano” (ibid.). Quer isto dizer que os estudos estatísticos constantes que nos chegam nas “gordas” dos jornais podem ter uma base estatística inacessível ao público, facto este que não nos permite ter a certeza do que é verdadeiro ou não, descredibilizando o papel dos estudos científicos, demográficos, económicos ou políticos. Com este tipo de pensamento, Dunne & Raby (2013) podem ter criado uma metacrítica no desenvolvimento do projeto Foragers ao mesmo tempo que alertam o público sobre o estado do planeta. Todavia, se aceitarmos que a estatística da ONU está correta e o público tem acesso aos dados que conduziram esta investigação, Dunne & Raby (2013) conseguiram engendrar uma forma muito pronta de solucionar um problema que ainda está por chegar. A reflexão à cerca do sobrepovoamento do planeta e consequente escassez de alimentos, é um fator incontornável neste projeto, no entanto, a forma como solucionariam esta problemática não significa, propriamente, que os objetos diegéticos que atuam como um sistema digestivo externo, devam ser disseminados pela população, ou que consigam ser aplicados. É exatamente este tipo de característica de “não-funcionamento” que Dunne (2005) partilha, ao defender que a ênfase dos produtos experimentais seja focada na ideia que representa e não nas questões técnicas e mecânicas (p.153). Pode-se então considerar ambos os projetos de Dunne & Raby são de design especulativo. Apesar de acarretarem a base conceptual transversal a todos os tipos de design até aqui escrutinados, os projetos reúnem características específicas da prática do design especulativo, como é o caso da materialização de produtos para combater uma determinada problemática social futura. O design especulativo, através do foresight e da capacidade de prospetividade dos designers, discorre um exercício especulativo que fornece soluções para eventuais problemas futuros. Isto é, o design especulativo antecipa a forma como determinados caminhos da ciência, da tecnologia ou da sociedade podem vir a culminar em produtos, que possivelmente podem alterar o paradigma social que conhecemos, a partir do momento que são massificados. Dunne & Raby (2013) fazem mesmo uma analogia com o poderio que a ciência e tecnologia detêm sobre a sociedade, questionando se “(…) estamos preparados para tratar a sociedade como um laboratório vivo, tal como fazemos com as tecnologias digitais (p. 48). As tecnologias digitais, apesar do controlo que exercem sobre a comunidade, possibilitam sempre ao utilizador sair delas, ao contrário dos avanços tecnológicos e científicos inerentes a um determinado estudo. O que Dunne & Raby (2013) fizeram nos projetos, foi precisamente disponibilizar um espaço Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 59 na esfera púbica para se debater as questões que envolvem a tecnocracia e a tecnologia, a mutação genética, a nuclearização e as alterações climáticas. 3.1.3 Not Yet Heard Outro projeto pelo qual se optou, foi o Not Yet Heard 32 (2010) de Bernhard Hopfengärtner & Gunnar Green33. O projeto é definido segundo a ideia que os computadores vão adquirir a capacidade de identificar todo o tipo de sons associados à condição humana. Este projeto, permite que uma máquina que capta sons - a Machine Listening34- consiga descodificar o mundo através da “leitura” de eventos acústicos. É introduzido na máquina o som associado a um determinado evento acústico, o som de uma cadeira a arrastar ou o som de passos de um sapato em contacto com o chão, por exemplo (figura 33), que permite que a Machine Listening entenda o mundo ao seu redor através do som. A Machine Listening ainda fornece uma base de dados sonoras que pode ser consultada e utilizada pela população da forma que entenderem. Por exemplo, se uma pessoa quer saber que zona da cidade está afetada por uma constipação, pode procurar o som associado ao “tossir” ou ao “espirrar” e a máquina indicar-lhe-á qual a zona correspondente à pesquisa, podendo evitá-la. 32 “Not Yet Heard” é uma expressão da língua inglesa que em português significa “por ouvir”, ou “ainda por ouvir”. 33 Bernhard Hopfengärtner e Gunnar Green são ambos designer e futurologistas, que utilizam o design como um veículo interdisciplinar. 34 “Machine Listening” é uma expressão da língua inglesa que em português significa “a máquina que ouve” Figura 25 - Descrições dos eventos acústicos que vão ser introduzidos na "Machine Listening". Video still 00:01:05 (Esquerda) – Video still 00:01:15 (Direita). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 60 Esta função, é possível porque a máquina tem a capacidade de funcionar como “City’s Ear”35 – uma funcionalidade que permite recolher sons através de recetores acústicos espalhados pela cidade que conseguem mapear as pessoas, as suas conversas e a sua acústica corporal (figura 34). A Machine Listening também acarreta uma função que protege as pessoas desta função da máquina, denominada por “White Noise”36. Segundo os autores, esta característica funciona como uma “(…) barreira de nevoeiro sonoro que incapacita a máquina de decifrar eventos acústicos. Providencia um “escudo” contra a Machine Listening quando os moradores da cidade desejam compartilhar segredos entre eles” (figura 35). Esta máquina permite criar uma base de dados à cerca do mundo, apenas através dos sons que determinados eventos acústicos desempenham. Hopfengärtner & Green (2010) descrevem a Machine Listening através da seguinte premissa: Quando os computadores aprenderem a entender o som, não só vão permitir uma nova gama de aplicações, como irão afetar a maneira como interagimos com nosso ambiente acústico. Alguns dispositivos podem-nos dar acesso a uma experiência de audição muito mais específica e seletiva, ao mesmo tempo que podemos tornar-nos muito mais conscientes dos sons que produzimos e do que eles dizem sobre nós. 35 “City’s Ear“ é uma expressão da língua inglesa que em português significa “ouvido da cidade” 36 “White Noise” é uma expressão da língua inglesa que em português significa “Barulho branco”. Figura 26 - Machine Listening a funcionar na ausência do "White Noise". Vídeo stil 00:04:59. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 61 A postura do projeto de Hopfengärtner & Green (2010) assume-se como design especulativo. Não só os autores partiram das questões “e se?” que fazem espoletar um ponto de partida essencial para o desenvolvimento de um projeto desta índole como também "(…) utilizaram o design como um meio de estimular [a] discussão e o debate entre (…) o público sobre as implicações sociais, culturais e éticas da emergência das tecnologias” (Dunne & Raby). Apesar deste projeto apresentar igualmente temáticas muito atuais, tais como a proteção de dados, barreiras da privacidade e a queda da esfera privada em detrimento da semi-pública, o problema encontrado neste projeto reside no “White noise”. Se o design especulativo tem como propósito conduzir o público a uma reflexão à cerca das tecnologias vindouras e consequentes consequências, julga-se que esta deva ficar à mercê do público ao invés de ser conduzida. Quando se apresenta um projeto que explora uma problemática advinda do progresso cientifico-tecnológico, parte-se do pressuposto que vai providenciar ao público uma amálgama de desafios contemporâneos que vão estar subjacentes à sua utilização. Neste tipo de abordagens, o designer não pode apresentar uma possível problemática futura em conjunto com uma solução. Isto é, se a máquina permite que se possa localizar eventos sonoros numa cidade através de uma base de dados acústicas isto poderia permitiria, acabar com o crime organizado ou monitorizar e controlar acusticamente a população, por exemplo. Mas ao apresentar uma solução que pudesse contornar o “City’s Ear”, como o “White noise”, o crime organizado conseguia contornar este controlo acústico e a população poderia continuar a sua vida, evitando a monotorização quando quisesse. A apresentação desta ideia sem a “solução” seria muito mais frutífera, visto que o que era apresentado era a ideia de uma sociedade controlada pela vigilância sonora que, ao não conseguir contornar esta condição, desenvolviam soluções que combatessem esta ditadura acústica. Ao retirarmos o “White noise” deste projeto, podíamos ser confrontados com questões éticas e de privacidade, visto que o produto poderia vender a ideia de “acabar com o crime”, mas que o preço a pagar seria a monotorização acústica constante da sociedade. O público poderia ser confrontado com dilemas que contrapusessem a segurança com a privacidade. Figura 27 - "White Noise" em funcionamento. Vídeo stil 00:03:48. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 62 Quando Dunne & Raby (2013) se referem ao design especulativo como a possibilidade de ser utilizado como veículo de reflexão social, como catalisador para o pensamento ou como uma ferramenta que faça espoletar perguntas, julga-se que objetivo deles é fornecer essa mesma capacidade reflexiva às pessoas, ao invés de serem apresentadas uma panóplia de problemáticas em conjunto com as suas soluções. Além disso, quando este tipo de desfecho é imposto, o público entra numa problemática e sai dela com uma solução. Apesar de tudo, Hopfengärtner & Green (2010) nunca mencionaram o projeto como sendo design especulativo. Todavia, Hopfengärtner no separador About37 do seu website descreve o seu trabalho como algo que se desenvolve (…) à volta de projetos que operam nestes espaços [observar conceitos científicos, ideias, desenvolvimentos técnicos e fenómenos culturais], podendo criar artefactos tangíveis, mais ou menos concretos: histórias, vídeos e objetos. Ao imaginar o possível, o especulativo e o não-existente (…), a Arte e o Design podem contribuir para um discurso mais amplo (…) (Hopfengärtner & Green, 2010). Este projeto desenvolve-se de forma muito similar ao Foragers de Dunne & Raby, no entanto, apresentam algumas diferenças. Dunne & Raby (2013) partiram de uma premissa e especularam à volta das suas possíveis implicações. Até aqui, quer Hopfengärtner & Green (2010) quer o duo britânico, possuem o mesmo método. No entanto, o processo de implementação e utilização da solução tornam-se distintos. Enquanto Dunne & Raby (2013) apresentaram uma solução biologicamente impossível de concretizar e forneceram ao leitor um cenário de utilização que se destaca pela capacidade de gestão do estrangement (porque permitiram uma noção real e distante ao mesmo tempo), Hopfengärtner & Green (2010) não conseguiram alcançar este estado. A problemática que foi levantada trouxe uma solução, o que leva a que o público não reflita sobre a temática do controlo acústico porque dispõem do “White Noise” para contornar esse controlo, fazendo cair por terra a dimensão crítica que todos os trabalhos de design especulativo devem conter. 3.1.4 Teacher of Algorithms Teacher of Algorithms de Simone Rebaudengo38 é um projeto datado de 2015 que retrata os possíveis problemas inerentes aos smart objects39 que constituirão qualquer futura casa. Os smart objects, de maneira a que consigam desempenhar a sua função, têm que ter um algoritmo na sua composição. O iRobot Roomba40 (um aspirador inteligente) por exemplo, deteta o que são escadas, segue sujidade e contorna objetos. Neste contexto da Internet Of 37 Nota biográfica do autor que dá a conhecer o seu trabalho ao público. 38 Designer interativo e de produto. 39 Objetos que incorporam uma certa autonomia e inteligência artificial (I.A.), podendo adaptar-se ao estilo de vida de cada pessoa; relacionado com a IoT. 40 Aspirador inteligente. Link para consulta: https://www.irobot.com/For-the-Home/Vacuuming/Roomba Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 63 Things (IoT) 41, Rebaudengo (2015) vê estes smart objects como “(…) objetos [por] terminar, que podem evoluir o seu comportamento através da observação, leitura e interpretação dos nossos hábitos”. Mais uma vez, as perguntas que serviram de mote para espoletar o projeto foram as “e se?”: (...) e se [os smart objects] não forem assim tão bons a aprender sem alguma ajuda? E se num futuro próximo, eu pudesse arranjar uma pessoa para treinar os meus produtos, melhor do que eu treino os meus animais de estimação? Porquê lidar com os problemas e riscos iniciais se eles até podem ter aprendido de forma errada? E se houvesse um treinador de algoritmos? (Rebaudengo, 2015) Rebaudengo (2015), comissionado pelo grupo ThingTank, dispôs ao utilizador uma narrativa em forma de vídeo que revela o admirável mundo dos treinadores de smart objects. No vídeo, o problema inicial surge quando uma máquina de café inteligente começa a libertar água quando não é suposto e o personagem resolve contactar alguém especializado neste tipo de desobediência eletrónica. Quando chega ao seu destino, o personagem depara-se com um centro de treino eletrónico, altamente diversificado, com vários objetos prontos para serem instruídos (figura 36). No caso de um aspirador inteligente, o treinador dá pequenos toques na carcaça do eletrodoméstico de maneira a que ele treine a sua habilidade de alteração da trajetória e consiga tornar-se mais eficiente a recolher sujidade (figura 37). 41 “Internet of Things” ou “Internet das coisas” – sistema de dispositivos interligados que, através da capacidade de transferir dados através de uma rede, não exigem interação humana. Link para consulta: https://internetofthingsagenda.techtarget.com/definition/Internet-of-Things-IoT Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 64 O projeto de Rebaudengo (2015) reúne todos os objetivos que constituem o exercício do design fiction. Tendo sempre a mesma base conceptual transversal ao design especulativo, crítico, discursivo, associativo e “ficcional”, o projeto apresenta: uma postura crítica e reflexiva, a abordagem dilata a experiência pela qual se teria de passar caso o nosso smart objects deixa-se de ser tão smart que nos forçasse a ter que contactar um técnico (provavelmente pago) que treinasse o nosso eletrodoméstico como se treinam os animais de estimação; possuí uma narrativa envolvente, porque apresenta um problema e o espetador é conduzido numa jornada que almeja a solução, da mesmo forma que o equilíbrio entre o estrangement e o conhecimento empírico está muito bem gerido. Rebaudengo (2015) consegue alocar o público numa linha temporal futura através da introdução de cenários reconhecíveis pelo público, como é o caso da paisagem de uma cidade, ou de uma zona de restauração (figura 38 e 39). Figura 28- Bancada de trabalho. Figura 29 - Video still 00:02:36. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 65 A construção de uma narrativa que prime pelo equilíbrio entre o estrangement e o conhecimento empírico neste tipo de projetos, são fatores fundamentais para o público se conseguir colocar nesta situação. Se o cenário42 utilizado fosse outros (um com elementos futuristas, por exemplo) o público poderia pensar que este tipo de experiência está muito distante da realidade que conhecem e não refletiam os problemas provenientes dela. A alocação de experiências de design especulativo num ambiente familiar e doméstico, assume- se como outro dos fatores principais na projeção de possíveis mundos, por forma a que o público tenha uma referência entre a realidade que experiencia e a que lhe é apresentada. Não é somente o cenário que nos remete à nossa realidade, o sentimento de suspeição e de incerteza quando caminhamos para um local que desconhecemos é outra das características que o personagem principal do Teacher of Algorithms demonstra quando caminha até ao centro de treinos de smart objects (figura 40 e 41). 42 Este projeto desenvolveu-se em Shanghai, China. Figura 30 - Video still: 00:01:46. Figura 31 - Video still 00:02:10. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 66 Quando o personagem principal entrega a sua máquina de café inteligente, o treinador diz- lhe: “(…) quando as pessoas me trazem smart objects, julgam que eles têm algum problema, no entanto eles apenas refletem os problemas dos seus donos” (retirado do vídeo 00:05:03 – 00:05:07). Duas notas sobre o discurso e a sua abordagem. A primeira abordagem diz respeito à posição altiva, confiante e até presunçosa que o técnico tem para com o cliente, dizendo- lhe “(…) esqueça. O que se passa com a sua máquina?” após lhe ter explicado a provável causa dos problemas que surgem nos smart objects. Esta faceta do técnico revela que o atrito comum entre a sabedoria dos técnicos e o desconhecimento dos clientes, talvez seja intemporal e incondicional à condição humana. Outro aspeto a ter em conta, incide precisamente no significado da frase do treinador. Quando os smart objects substituírem todos os nossos equipamentos eletrónicos, os problemas que podem resultar do seu mau funcionamento talvez sejam gerados pelo manuseamento impróprio destes objetos. No início do vídeo, o personagem principal aparece a utilizar a máquina de café várias vezes ao dia enquanto trabalhava em frente ao computador, originando que a máquina se ligasse durante a Figura 32 - Video still 00:02:12. Figura 33 - Video still 00:02:18. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 67 noite. Talvez tenha registado o intervalo de tempo que o personagem bebe café e quando passa esse período, a máquina liga-se. Este projeto obriga o público a refletir sobre a forma como os smart objects podem vir a adaptar-se ao nosso estilo de vida, abrindo a possibilidade de anteciparem os nossos movimentos ao traçarem padrões comportamentais, hábitos e rotinas. Se juntarmos a esta possibilidade, o controlo que as empresas detêm sobre nós começam a emergir questões pertinentes: quem nos garante que a nossa smart home não se torna num grande centro de recolha de informação? Ou que as empresas começam a desenvolver produtos com base nos dados que recolhem da nossa casa? Quem tem acesso a este tipo de informação? A privacidade de cada indivíduo é salvaguardada? Este foi o tipo de questões que foram levantadas quando se analisou o Teacher of Algorithms. Neste projeto, tem-se um vislumbre acerca da utilização da máquina do café, mas quando os smart objects substituírem na totalidade todo o recheio de uma casa, talvez alguém terá acesso ao número de vezes que uma pessoa compra leite por semana, ou quantas vezes a pessoa troca de roupa por dia. O projeto também nos oferece objetos diegéticos como é o caso da areia que é utilizada para treinar o aspirador inteligente (figura 42). A capacidade de prospetividade é igualmente espelhada ao longo do episódio, justamente porque faz alusão a um futuro em que os nossos smart objects necessitam de uma manutenção especial. No que concerne à liberdade económica e à inutilidade técnica, este projeto adquire ambas as componentes visto que o serviço que o treinador de smart objects presta não está disponível e os produtos diegéticos não estão à venda, apesar de Rebaudengo brincar com a situação, perguntando se alguém quer comercializar training dirt43. 43 “Training dirt” é uma expressão inglesa que significa em português “terra de treinos” ou “terra para treinar”. Figura 34 - "Training Dirt" (Retirado de Rebaudengo, 2015). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 68 De todos os projetos neste capítulo mencionados o Teacher of Algorithms assume-se como o único de design fiction devido à forma como é apresentado. Como Bleecker (2009) defendia, este tipo de design tem a vantagem de estar alocado num pequeno vídeo que auxilia o público não só a absorver narrativa, como a associar o cenário proposto com o seu quotidiano (p.83). Este projeto pode ser aliado à ficção científica, no entanto, a sua versatilidade, paralelismo possível com a nossa realidade e introdução dos objetos diegéticos, tornam o projeto de Rebaudengo (2015) um projeto de design fiction que, de uma maneira muito implícita, revela a preocupação de um mundo habitável. Independentemente de reunirem com precisão todas as particularidades inerentes à prática do exercício crítico e especulativo, os projetos até aqui analisados apresentam características inerentes ao design especulativo. Os projetos de Dunne & Raby (2013) foram os que conseguiram incorporar com maior fluidez todas as características propostas na taxonomia conceptual, enquanto o projeto de Hopfengärtner & Green (2010) padecia de alguns problemas inerentes à conceção, resultando na alocação forçada (White Noise) de característica inerentes a esta prática. Já o projeto de Rebaudengo (2015) assume-se como o testemunho de uma continuidade saudável da prática do exercício especulativo em design através do design fiction. Dunne & Raby (2013) como autores do termo design especulativo, tornam difícil o processo de apontar algum aspeto negativo na conceção dos projetos, apesar de se ter encontrado uma incongruência relativa à forma como os Anarcho-Evolucionists utilizam a mutação genética. Foi também possível verificar uma metacrítica em Foragers (2009-2010) relacionada com os estudos estatísticos, para além da crítica subjacente às possíveis consequências provenientes da pegada humana no planeta Terra. Em UMK (2013) a crítica está implícita nas variadíssimas opções políticas e sociais que a sociedade contem, apesar do destaque ser direcionado para os Digitarians devido às semelhanças que apresentam com a nossa sociedade. Para além das outras três sociedades, a descrição desta comunidade é aquela que mais crítica a nossa sociedade atual por, precisamente, enaltecer os problemas provenientes de uma governação ancorada na tecnocracia. Em todo o caso, qualquer uma das quatro sociedades distintas permite, não só ingressar num exercício de reflexão à cerca da forma como coabitamos o planeta, como também abre espaço para o social dreaming, tornando ambos dos projetos em exercícios de design especulativo. Em Not Yet Heard (2010) é possível verificar a intenção de tornar o futuro num sítio habitável, no entanto, a implementação do White Noise retirou parte da capacidade de reflexão que poderia vir a espoletar, precisamente porque a conduziu. As características inerentes à prática do design especulativo prezam por uma reflexão social, no entanto se essa consciencialização não for espontânea, dificilmente se adotam por caminhos que possam prevenir o desfecho que Hopfengärtner & Green sugeriram. Os projetos de design especulativo para conseguirem alcançar aquilo que percorrem, têm que deixar o público sem escapatórias possíveis, por forma a que seja ele, através do exercício reflexivo, o responsável Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 69 pelo engendramento de uma possível solução. Do mesmo modo, o Teacher of Algorithms (2015) de Rebaudengo apresenta uma solução para a problemática dos smart objects, porém, esta solução acarreta algo de negativo, prejudicial ou desconfortável - um pagamento ao treinador de objetos inteligentes. Ambos os projetos reúnem as características intrínsecas ao design especulativo, no entanto, devido à alocação desta problemática num contexto quotidiano com imensas semelhanças como o que seria um bairro na China, o projeto de Rebaudengo (2015) apresenta-se como design fiction. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 70 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 71 Capítulo 4. Black Mirror: uma série de design fiction ou design especulativo? O presente capítulo tem como objetivo principal explorar as barreiras conceptuais que circunscrevem o exercício especulativo. Através da análise de dois episódios da série britânica Black Mirror (iniciada em 2011 e ainda a decorrer), percorre-se um caminho que objetiva encontrar as diferenças e semelhanças entre um projeto de design especulativo e design fiction. Foram selecionados estes dois tipos de design devido às semelhanças que apresentam entre si, e às diferenças que ostentam dos outros tipos de design previamente abordados. O design associativo não é aqui contemplado devido à sua área de atuação se restringir ao design de produto. Já o design discursivo não é contemplado por ser uma prática no design que comunica, característica essa que é transversal a todos os projetos e episódios submetido a escrutínio. Como ambas as temáticas emanam da mesma base conceptual (o design crítico), a probabilidade destes dois tipos de design se confundirem é elevada, apesar de apresentarem características que os diferenciam, principalmente, devido à forma como são expostos ao público. Para que se consiga percorrer estes objetivos de forma clara e metódica, a configuração deste capítulo vai estar subdividida em duas categorias distintas e uma terceira que surge após o escrutínio de ambos os episódios: a) explicação da temática do episódio e áreas envolventes, fazendo alusão à sua narrativa e consequente aproximação da temática com nuances da nossa realidade, recorrendo a notícias, investigações e conteúdos pertinentes que possam ser entrosados com a temática; b) características do exercício especulativo nos episódios, onde se vai investigar a forma como cada episódio selecionado, contempla características inerentes ao exercício especulativo, nomeadamente a: i) Postura cética, crítica e reflexiva; ii) Narrativa; iii) Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico; iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro. Por opção, a alínea v) “Capacidade de prospetividade” será contemplada no tópico 4.3 deste capítulo e a alínea vi) “Liberdade económica e inutilidade técnica” será negligenciada porque as séries para serem produzidas possuem uma certa “liberdade económica” e a sua inutilidade técnica é evidenciada pela inexistência de produtos que a série ostenta. Após este enquadramento temático, irá relatar- se a c) Justificação da escolha dos episódios e categorização dos episódios, design especulativo ou design fiction. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 72 Black Mirror (2011 – ) é uma série antológica44 norte americana criada por Charlie Brooker classificada como “Drama”, “Sci-fi” e “Thriller” de acordo com o website Internet Movie Database (IMDb) e é formada, até agora, por quatro temporadas, cada uma delas composta por um número diferente de episódios. A primeira temporada é composta por três episódios, a segunda por quatro episódios, enquanto a terceira e a quarta possuem seis episódios. Black Mirror é uma série que apresenta histórias de um futuro não muito distante, onde o mundo em que os personagens estão inseridos é adornado por tecnologias futuras. A série fornece ao espectador o lado mais negro das tecnologias, apresentando narrativas de um futuro com “contemporary hoocks” (Malpass, 2017, p.101), que colocam os personagens em situações desconfortáveis. Charlie Brooker produtor e escritor da série, numa entrevista datada de 2014 ao Chanel 4, explica o porquê do título, mencionando que “(…) qualquer televisão, LCD, iPhone ou iPad se forem alvo de observação quando estiverem desligados, assemelham-se a espelhos pretos, e há qualquer coisa de fria e horrível nisso, tornando o título muito adequado à serie”. Sinteticamente, a série tem como premissa principal, a facilidade com que as tecnologias amplificam e espelham o carácter mais sombrio do ser humano, materializando desafios do futuro tecnológico, ao mesmo tempo que provocam questões ao público. Os episódios de Black Mirror que vão ser analisados são: White Christmas45 e Nosedive46. Em ambos, vai-se conduzir uma análise à cerca da narrativa individual de cada episódio e dos objetos mais simbólicos que ostentam. Sendo assim, a análise de cada episódio vai ser guiada pela taxonomia criada, evidenciando os aspetos reflexivos, críticos e céticos que cada narrativa apresenta, bem como se irá averiguar a forma como os objetos diegéticos de cada episódio se tornam relevantes, não só para o seu desfecho, como também para a temática do exercício crítico e especulativo no design. Os episódios escrutinados foram selecionados de forma diferente, mas com as mesmas pretensões que movem esta área do design: White Christmas foi selecionado devido à importância que a Inteligência Artificial (I.A.) assume na esfera pública, à capacidade de prospetividade distinta que Charlie Brooker conseguiu imprimir no episódio e pela domesticação de objetos diegéticos futuros que transportam o espetador para um presente alternativo, com a banalidade e rotineira vivência que experienciamos no nosso mundo; Nosedive foi eleito, não só pela paleta de cores distinta de todos os outros episódios, como também pela crítica que desenvolve acerca da nossa dependência pelos smartphones, bem como pela materialização de possíveis consequências, advindas da submersão digital para a qual caminhamos. Devido ao fato dos episódios terem, não só diferentes realizadores como diferentes ênfases, a sua análise narrativa foi conduzida de forma diferente. Em White 44 Série que apresenta histórias e personagens diferentes a cada episódio. Link para consulta: https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/anthology 45 Terceiro episódio da segunda temporada. 46 Primeiro episódio da terceira temporada. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 73 Christmas foi destacada a problemática inerente à I.A. enquanto em Nosedive o destaque foi conferido à paleta de cores utilizada. Os episódios são analisados segundo a mesma taxonomia conceptual, no entanto, o episódio Nosedive, devido ao destaque que lhe foi conferido no que concerne à paleta de cores, torna-se mais extenso devido ao número de figuras utilizadas. Todavia, a análise de ambos está adaptada com a dimensão da narrativa e com a quantidade de objetos diegéticos que cada um contempla. 4.1 White Christmas 4.1.1 Explicação da temática do episódio e áreas envolventes O episódio interliga três histórias tecnológicas, contadas por dois homens numa casa isolada e adornada de neve durante a época de Natal. Estes homens estão naquele lugar remoto há cerca de cinco anos e pouco falavam um com o outro. Na véspera de Natal, “Matt” (interpretado por Jon Hamm) está a preparar o almoço para “Joe” (interpretado por Rafe Spall) com a pretensão de criar o ambiente ideal para que possam, finalmente, falar sobre qualquer coisa. “Matt”, vendo que “Joe” não se abre com facilidade, decide contar-lhe a história que justifica o facto de ali estar. Matt estava a ajudar um rapaz a conquistar raparigas, dando-lhe instruções sobre qual seria o método mais eficaz para o fazer. Utilizando o implante ilegal “Z-Eye” que lhe permite ver o que outras pessoas vêm (figura 42), Matt vai dando dicas e conselhos ao seu cliente que acabam por resultar, culminando na ida dele ao apartamento de uma rapariga. Já no apartamento, o ambiente parece ser propício para um envolvimento, no entanto falecem os dois envenenados. Com receio que este acontecimento fosse ligado a ele, Matt elemina qualquer vestígio que o pudesse interligar a um duplo homicídio. Atrapalhado e com pressa de destruir as provas, Matt acaba por fazer demasiado barulho em casa, fazendo com que a sua esposa acorde e descubra o que andara a fazer, “bloqueando-o” (figura 43). Figura 35 - "Z-eye" em funcionamento. Video still 00:11:55. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 74 O “bloqueio” é uma de várias funcionalidades a que os personagens têm acesso que, quando ativo, torna impossível a comunicação entre quem bloqueou e quem foi bloqueado. Isto é possível devido a um género de realidade aumentada que as pessoas desta narrativa utilizam em forma de lentes de contacto que, entre “bloquear” outro utilizador, também lhes permite ligar e mandar mensagens, por exemplo. Este dispositivo assume-se como um substituto aos smartphones e é manuseado através de um pequeno controlador. Depois de Matt ter contado a sua história, Joe mantem a reticência e não lhe revela o motivo de estar encarcerado naquele sítio. Enquanto almoçavam, Matt propõe-lhe que ele adivinhe qual seria a profissão dele tendo em conta aquilo que lhe ia contar. Ele explica-lhe que a profissão dele consistia na instalação de um chip, chamado Cookie, em pessoas que quisessem duplicar a sua cognição. Cookie é um chip que conseguia duplicar a consciência de uma pessoa, para um estado digital, permitindo ao utilizador ver o seu “eu” multiplicado – “(…) um cérebro simulado, cheio de códigos, armazenados neste pequeno aparelho, a que chamamos Cookie” (figura 44). Funciona de uma forma semelhante à I.A., só que ao invés de ter que aprender quais as rotinas e preferências do utilizador, a Cookie já sabe isso tudo porque, são a mesma pessoa. A única diferença é que uma é real e a outra é uma cópia digital armazenada num objeto, que funciona como um assistente virtual semelhantes com a “Alexa” da Amazon. Na história que conta a Joe, Matt está a instalar o Cookie em Greta (interpretada por Oona Chaplin) que quando se apercebe que está confinada a servir o seu “eu real” entra em colapso. Os Cookies têm como função a acordar os donos, meter pão a torrar, tirar café, organizar a agenda diária, certificar-se que o chão está à temperatura correta, abrir as janelas de casa, basicamente, tratar de tudo aquilo a que diz respeito à lida de uma casa. Tudo isto é possível porque os Cookies dispõem de um painel de controlo (figura 45) que lhes permite ter acesso total sobre a smart house dos seus donos. Figura 36 - "Bloqueio Ativo". Video still 00:25:45. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 75 O que Joe não sabe, é que a conversa, o almoço e a abordagem amigável que Matt tem para com ele assume-se como uma tentativa de extrair uma confissão de um crime que Joe praticara. Este Joe, na verdade é um Cookie do verdadeiro Joe que está preso por um duplo homicídio. Matt fora recrutado pela polícia para lhe tentar extrair uma confissão por forma a que a pena do o crime que cometeu – a utilização ilícita do Z-Eye – fosse reduzida. Em suma, este episódio retrata a forma como a clonagem da cognição humana pode apresentar problemáticas e benefícios para a comunidade. Por um lado, temos a subserviência voluntária de uma pessoa para satisfazer as necessidades dela própria, enquanto por outro lado temos a utilização do Cookie como ferramenta judicial que pode auxiliar na confissão de um crime. Figura 37 - O "Cookie" (posição central), Video still 00:32:54. Figura 38 - Sala de controlo do Cookie. Video still 00:39:31. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 76 4.1.2 Características do exercício especulativo no episódio Uma das questões em estudo diz respeito à aproximação deste episódio de Black Mirror com as características transversais a qualquer prática do exercício especulativo, seja ele o design especulativo ou design fiction. No que diz respeito à característica i) “Postura cética, crítica e reflexiva”, a forma como o episódio foi engendrado remete-nos a adotar um olhar cada vez mais desconfiado em relação ao futuro. A narrativa de White Christmas, trilha um caminho para uma reflexão sobre as tecnologias de amanhã e o caminho que a ciência percorre. A comparação entre a forma como Matt, o empregado que configurava os Cookies, e o treinador de smart objects de Rebaudengo (2015) puniam os “objetos inteligentes”, é inevitável. O treinador batia na carcaça de um aspirador para o obrigar a virar, enquanto Matt, através de um tablet monitorizava e controlava os Cookies, acelerando a velocidade com que o tempo passava no assistente virtual, oferecendo controlo total ao utilizador. Podendo comprimir mil anos num minuto, Matt tinha domínio total sobre os Cookies que, após largos períodos de tédio, acabavam por quebrar e abraçavam qualquer tarefa que lhes fosse atribuída. Para além disso, a figura 46 mostra-nos que o Cookie até pode apresentar uma forma física igual à do “seu dono” através de uma característica que o programa ostenta, a “Simulação Corporal”. A narrativo reme o público a refletir à cerca da I.A. e possíveis consequências vindouras da sua disseminação. Como William Gibson afirmou numa entrevista datada de 1994, as “(…) tecnologias são moralmente neutras até serem aplicadas” (Josefsson, 1994). Neste caso, a tecnologia pode ser utilizada para fins diferentes como se pôde confirmar com a utilização do Cookie para auxiliar o departamento da polícia, ou para auxiliar a gerir uma casa. Para Leonhard (2016), a Internet of Things (IoT) torna-se possível através da incorporação de sensores em todos os objetos que se conectam virtualmente entre tudo e todos (p.66). No entanto a introdução da I.A. nestes objetos, criam a base perfeita para a criação de uma meta-inteligência que consegue perceber, ler e utilizar a informação de forma aperfeiçoada (ibid.). O Cookie, faz isto e muito mais. Não precisa de tempo de adaptação, não necessita de aprender a ler os padrões comportamentais nem necessita de ser atualizado. Ainda assim, é pertinente refletir acerca da utilização dos dados que o Cookie recolhe. Assumindo que estes aparelhos recolhem, tratam e enviam informação, a eminência da deturpação da esfera privada acentua-se, bem como enaltece a “obesidade digital” e o sedentarismo (ibid.). Este tipo de aparelho obriga o público a refletir acerca de quanta informação quer prestar aos criadores destas tecnologias e de que forma a sua informação vai ser utilizada. Se um objeto da IoT já consegue fornecer preciosa informação acerca dos padrões de consumo, hábitos, rotinas e preferências à cerca dos cidadãos, uma I.A. igual, quer física quer cognitivamente, ao seu utilizador, conseguirá providenciar relatórios detalhados sobre a forma como se vive numa determinada habitação. Desta forma, o lado mais perverso da IoT em conjunto com a I.A., pode vir a ser “(…) o clímax do pensamento mecânico – o sistema operativo perfeito de espionagem e a maior rede de vigilância de sempre, impondo total conformidade humana e destruindo toda a aparência remanescente de anonimato” (Leonhard, 2015, citado em Leonhard, 2016, p.67). Como Leonhard (2016) expõem, estes tipos de tecnologias Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 77 transformam tudo e toda a gente num centro de informação, onde a ligação constante à rede e consequente exposição do seu quotidiano podem vir a ser utilizados como mais valias para alterar paradigmas sociais e económicos. O Cookie é uma tecnologia que fascina qualquer pessoa e que nos faz ambicionar um admirável mundo novo, mas a que preço? As novas tecnologias e sistemas de comunicação tecnológicas já alteraram a forma como vivemos em sociedade, como comunicamos, como nos movemos e como adquirimos produtos e tudo isto foi conseguido de livre e espontânea vontade, porque o ser humano não iria prescindir da oportunidade de estar na vanguarda tecnológica. No que diz respeito à característica ii) “Narrativa”, esta conseguiu transportar o espetador para um futuro paralelo ao nosso, conseguindo convergir três histórias que se interligam num só enredo distópico que coloca os valores humanos em suspenso. A história privilegia o drama humano enquanto a tecnologia só lá está como veículo de reflexão (Bleecker, 2009, p. 37), obrigando o público a refletir acerca do futuro tecnológico. Como todas os projetos de design especulativo, “White Christmas” também começa com a pergunta “e se?”: “e se fosse possível duplicar a cognição humana?”. Devido ao facto do episódio se apresentar em formato de vídeo narrativo ou história, “White Christmas” torna-se num exemplo de design fiction. Como Bleecker (2009) defende "(...) podemos colocar os [produtos] de design [fiction] numa história e move-la para o background, como se eles fossem mundanos e ordinários – porque o são, ou virão a ser (p. 37). Este enredo todo só podia conferir a reflexão ao utilizador se a característica iii) “gestão entre o estrangement e o conhecimento empírico” fosse articulada com perícia. A narrativa desenvolvida por Charlie Brooker consegue providenciar ao espetador elementos essenciais para que ele acredite que o que está a assistir é um episódio mundano do futuro. Os personagens da série continuam a ter que comer e que falar, a sociedade continua a confiar em pessoas para garantir a sua segurança (polícia), o sistema judicial continua a ter as suas falhas e as pessoas continuam insatisfeitas. É a nossa realidade, só que é projetada num enredo futurístico. Este episódio “(…) é um tipo de prática que recombina a tradicional escrita narrativa com a materialização de ideias em objetos” (Bleecker, 2009, p. 7) e “(…) é precisamente este encaixe entre ideias e coisas que permite que o design seja contemplado como uma forma de discurso (…)” (Dunne, 2005, p. 42). Em relação à característica iv) “objetos diegéticos”, existem vários exemplos. Todos eles permitem que “(…) os espetadores possam ser atraídos para o espaço conceptual onde o objeto está inserido (…)” (Dunne, 2005, p.92), de modo a que a sua contemplação seja orientada para a ideia inerte à sua criação, em vez do seu aspeto funcional. Para além do objeto onde os Cookies estão inseridos que se assume como uma prisão, outro dos objetos controversos é o tablet que permite controlar os Cookies. Este objeto pode ser visto como a vareta que o treinador de smart objects de Rebaudengo (2015) utilizava para corrigir o aspirador inteligente, uma vez que o tablet também assume um papel de agente controlador Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 78 e de objeto de punição, por permitir que se ajuste a velocidade do tempo, através de uma característica denominada por “Ajuste temporal” (figura 47). Outro dos objetos diegéticos presentes em “White Christmas” que assume relevância extrema, é a lente de contacto disseminada entre todos os personagens. O dispositivo que têm na retina que lhes permite, entre outras funções, “bloquear” as pessoas é assumido como um instrumento de punição para não-Cookies. Ao longo do episódio este curioso dispositivo, que assume a forma de um pequeno botão, acarreta as funcionalidades: “Telefone”, “Mensagens”, “Música”, “Foto”, “Procurar”, “Ampliar”, “Mapa” e “Bloqueio” (figuras 48, 49 e 50), podendo ser considerado um género de smartphone do futuro. A forma como se utiliza, o processo à jusante da sua criação e a forma como os logotipos são desenvolvimento, perfazem algumas características inerentes à coluna “A” de Dunne & Raby (2013, p. vii) – o aclamado “design tradicional”. Aqui, é possível verificar que as técnicas inertes ao design Figura 39 - Funcionalidade da “Simulação Corporal”. Video still 00:33:39. Figura 40 - Funcionalidade do "Ajuste temporal". Video still 00:36:51. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 79 especulativo “(…) não têm a intenção de substituir “A”, mas adicionar outra dimensão, algo que seja comparável e que facilite a discussão” (p. vi). Todavia, o facto de a narrativa estar inserida num contexto distópico em que se percorre a reflexão humana, os objetos que adornam a série são puros objetos diegéticos porque apresentam inutilidade técnica como “(…) parte do seu valor, deslocando a atenção do consumidor para a função conceptual da máquina, que fomenta a imaginação e coloca os espetadores num espaço de reflexão crítica” (Dunne, 2005, p.89). Figura 41 - Funcionalidades “Procurar”, ”Foto”, “Música” e “Mensagens”. Video still 00:54:15. Figura 42 - Funcionalidades “Ampliar”, “Mapa” e “Bloqueio”. Video still 00:54:17. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 80 4.2 Nosedive 4.2.1 Explicação da temática do episódio e áreas envolventes A temática subjacente ao primeiro episódio da terceira temporada de Black Mirror, Nosedive, dilata a dependência que o ser humano tem pelo feedback da comunidade digital. Imerso na extrapolação desta temática, o espetador vê “Lacie Pound” (interpretada por Bryce Dallas Howard), embrenhada numa sociedade em que o dinheiro, a grande moeda de troca, é secundarizado por um sistema de classificação social. Os cidadãos desta narrativa estão inseridos num complexo sistema de cotação social onde facultam reviews entre eles através de um smartphone (figura 51 e 52). Este sistema que se assume como a derradeira rede social, opera através da atribuição de uma cotação, que varia entre 0 a 5 estrelas que é atribuída através do menor convívio ou da conversa mais banal. O “small ou cheap talk”47, a bajulação constante, o cinismo, a falsidade e os “sorrisos amarelos” são denominadores comuns nas abordagens que as pessoas têm umas com as outras, até as relações em teoria mais fortes, os casamentos, são subvertidos a uma espiral onde a plasticidade, a aparência e o cuidado constante para não se ofender ninguém, não se vá ter uma má nota, reinam. O enredo deste episódio coloca Lacie a fazer de tudo para obter um poderoso 4,5 por forma a poder pagar uma casa em prestações. 47 Expressão inglesa que significa em português “conversa fiada” ou “conversa sem importância”. Figura 43 - Funcionalidade do "Bloqueio" em evidência. Video still 00:25:38. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 81 O somatório das reviews culmina numa média que passa a delimitar a condição não só social, mas também económica de uma pessoa. Por exemplo, para se poder viajar de expresso num autocarro é necessário que a média social de uma pessoa seja igual ou superior a 4.00 ou estão interditas de viajar. O sistema não substituí por completo o dinheiro, mas é mais valioso que ele. O acesso a facilidades de pagamento, descontos ou outras regalias associadas só são acessíveis a prime users48 – utilizadores com um social rating bastante alto. A própria sociedade é segmentada desta forma. As pessoas que estão no topo da hierarquia social (os 4.7 e superiores) monopolizam e controlam as pessoas de pontuação mais baixa, pois a pontuação que atribuem é bem mais valiosa que a pontuação dos restantes, quer seja para “subir” ou para “descer” a pontuação, podendo chantagear constantemente as pessoas. 48 Expressão inglesa que significa em português “utilizadores principais” ou “utilizadores premium”. Figura 44 - "Lacie Pond - 4.243". Video still 00:02:16. Figura 45 - "Social rating interface”. Video still 00:03:20. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 82 4.2.2 Características do exercício especulativo no episódio A característica i) “Postura cética, crítica e reflexiva” é espelhada pela forma como o episódio termina – Lacie é presa porque atingiu o valor 0 (=zero) na escala de classificação social, sendo considerada uma sociopata. Este término permite ao espetador criar uma analogia com o poder que as redes sociais detêm no nosso quotidiano, funcionando como um veículo que tanto oferece, como retira. Segundo o Influencer Marketing Hub, grande parte dos influenciadores da aplicação Instagram, por exemplo, são “personalidades da internet”. Composta, maioritariamente, por pessoas que ostentam objetos de luxo ou que gravam episódios do seu dia-a-dia, a relevância que atingem na esfera digital traz resultados reais na esfera social, tal como sucede em Nosedive. Outro dos fenómenos inerentes à popularidade nas redes sociais ou na televisão são as “aparições” de tais personalidades em eventos. A quarta edição da Semana Cultural de Alvarenga (Arouca) que decorreu entre 23 a 30 de julho de 2018, por exemplo, teve a presença de vários concorrentes da sétima temporada da “Casa dos Segredos” (originalmente francesa e adaptada em Portugal pelo canal televisivo TVI) que, segundo Vendeira (2018) gerou alguma polémica. Em causa estava a aparição dos ex- concorrentes numa semana cultural, fator este que foi utilizado por alguns cibernautas para manifestarem o seu desagrado perante a convergência entre tais personalidades com um cartaz cultural. Apesar do enredo subjacente a Nosedive parecer distópico e longínquo da nossa realidade a presença do vencedor da “Casa dos Segredos 7” num evento de cariz recreativo, é um pequeno exemplo revelador da importância conferida às redes sociais e às restantes plataformas mediáticas dos dias de hoje. Alguém com um “rating” (ou seguidores) muito elevado, retira mais valias, caso contrário, como Mabus (2016) diz “se não estás online, não existes”. Apesar de tudo, este mundo distópico que é exposto em Nosedive parece distante da nossa realidade, mas não está. Um mecanismo digital muito similar ao utilizado neste episódio de Black Mirror está a ser desenvolvido na China, onde o “(…) estado Chinês está a preparar um sistema de pontuação social que irá monitorizar o comportamento da população através de “créditos sociais” 49. Segundo uma notícia da Bussiness Insider datada de 8 de abril de 2018, este sistema ainda está fragmentado e pretende entrar em vigor em 2020 apesar de já estar em fase de testes (Ma, 2018). Este sistema vai permitir monitorizar e controlar o comportamento das pessoas. Tal como a bolsa de valores, o valor social de uma pessoa também pode subir ou descer, dependendo do seu tipo de comportamento (Ma, 2018). Parâmetros como a “(…) Condução imprudente, fumar em zonas de não-fumadores, comprar demasiados videojogos ou produtos considerados “fúteis” ou fazer posts de notícias falsas(...)” são alguns exemplos que podem fazer descer a cotação social (ibid.). Dentro de algumas consequências que surjam da violação destes parâmetros, evidenciam-se o 49 Consultado a 28.08.18, através de: https://www.businessinsider.com/china-social-credit-system-punishments-and- rewards-explained-2018-4, Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 83 “impedimento de viajar de avião ou comboio, (…) restrição da velocidade da Internet, (…) proibição de frequentar as melhores escolas, (…) interditar o acesso aos melhores empregos (…) ou (…) vedar o acesso aos melhores hotéis” (Ma, 2018, em Bussiness Insider). Não é somente o estado chinês que pretende monitorizar a prestação social da população, outro grande “estado” também vai ingressar neste tipo de controlo sob a sua “população” – o Facebook. Segundo a notícia de 21 de agosto de 2018 do “The Washington Post”, o Facebook “pretende classificar os seus utilizadores entre 0 e 1 consoante o seu nível de confiabilidade” (Dwoskin, 2018). Esta medida pretende combater a epidemia das fake news que assolam o universo digital através da implementação de um algoritmo que determina se a pessoa partilha conteúdo de confiança. Numa entrevista ao “The Washington Post”, Tessa Lyons, Product Manager do Facebook na área da informação, revela como vai funcionar este algoritmo: Por exemplo, se alguém anteriormente nos der um feedback em relação à falsidade de um artigo e o artigo se confirmar como falso por um "fact-checker"50, passamos a considerar o feedback dessa pessoa como importante para o futuro, em vez de alguém que (...) fornece notícias falsas em vários artigos, incluindo aqueles que são verdadeiros (Tessa Lyons, citada em Dwoskin, 2018). O problema que surge no seio desta implementação reside no facto do Facebook não disponibilizar os critérios de julgamento para tal classificação. Claire Wardle, diretora do laboratório de investigação First Draft na Harvard Kennedy School, refere-se ao sistema do Facebook, dizendo que “(…) o irónico é que eles não nos podem dizer como nos estão a avaliar, senão o algoritmo deles era contornado" (Claire Wardle, citada em Elizabeth Dwoskin The Washington Post). A característica ii) “Narrativa” que se desenrola em Nosedive remete o espetador para uns novos anos 1950 dos E.U.A. Neste episódio, a forma como a sociedade vive, as ambições, o estilo de roupa e as casas onde habitam, apresentam semelhanças com o estilo de vida americano do pós-segunda Guerra Mundial. Nos E.U.A. esta década é caracterizada pela “(…) confiança que [os americanos] detinham na paz e na prosperidade(…)” após o conflito mundial, culminando no crescimento populacional americano que presenciou o nascimento de 3,4 milhões de criança em 1964 (History Editors, 2010). Com o crescimento populacional a alastrar-se pelos E.U.A., o setor imobiliário verificou um acentuado desenvolvimento. A procura por habitações e zonas habitacionais que pudessem comportar as necessidades crescentes das famílias americanas, criou o mote necessário para desenvolvimento de um dos símbolos do desenvolvimento de cidades como Nova York, Nova Jérsei, Pensilvânia e Massachusetts: os bairros suburbanos (ibid.). Um dos principais impulsionadores deste 50 Expressão inglesa que significa em português “verificador de factos”. Esta expressão não foi traduzida por não existir uma tradução oficial para a mesma. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 84 movimento foi o agente imobiliário William Levitt que se tornou notório por “(…) comprar terrenos nos arredores das cidades e utilizar técnicas de produção em massa para contruiu casas modestas e baratas” para as famílias americanas (ibid). Ficando conhecidos por Levittowns, estes bairros apresentavam um tipo de configuração estandardizada (figura 53) que também pode ser verificada no bairro de Lacie Pounds em Nosedive (figura 54). Quer Levittown de 1950 quer o bairro de Lacie Pound apresentam semelhanças arquitetónicas na forma como foram projetados. As casas dos bairros suburanos de 1950 nos E.U.A. eram configuradas segundo o Cape Cod design51 que se caracterizava pela “(…) forma retangular com alpendre, chaminé central, porta de entrada colocada no centro da casa” (Craven, 2017), entre outros. Estas características aproximam-se da configuração estandardizada que o bairro em que a personagem principal coabita com o seu irmão e que tornam o espaço envolvente deste episódio algo com que o espetador se possa identificar, ao mesmo tempo que lhe impinge uma conjetura social diferente daquela que experiencia (figura 55). 51 Estilo arquitetónico de urbanizações típicas americanas que se caracterizavam pela sua configuração baixa e larga, e com uma disposição arquitetónica considerada das mais icónicas. Link para consulta: https://www.countryliving.com/real-estate/news/g4347/cape-cod-house/ Figura 46 - Levittown, NY, USA, em 1950. Figura 47 - Bairro de "Lacie Pound". Video still 00:00:37. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 85 No que diz respeito à característica iii) “Equilíbrio entre estrangement e conhecimento empírico” outro dos fatores a ter em conta é o fato dos Levittowns em Nova York na década de 50’ serem apelidados de “Fertility Valleys” (Vale da Fertilidade) ou “The Rabit Hutch” (Coelheira) criando uma analogia com as numerosas famílias americanas. No entanto, o “american way of life” (estilo de vida americano) não era assim tão radiante para as mulheres, (…) de facto, os booms dos anos 1950' tiveram efeitos particularmente limitadores para várias mulheres americanas. Os livros de aconselhamento e os artigos de revistas ("Não Tenha Medo de Casar Nova", "Cozinhar, Para Mim, É Poesia", "A Feminilidade Começa em Casa") incitavam as mulheres a abandonar o trabalho, para abraçarem o seu papel como esposas e mães". A ideia que era proposta para o papel da mulher nesta década, nomeadamente cuidar dos filhos e encarregar-se da vida doméstica, não era uma novidade, no entanto, o facto de terem sido as mulheres a suster os E.U.A. no decorrer da II Grande Guerra Mundial, a ambição por uma vida com maior significado e preponderância social, fez gerar uma onda de insatisfação. Esta vaga de descontentamento ganhou voz através do livro “A Mística Feminina” (1963) de Betty Friedan, arguindo que os subúrbios estavam a “enterrar as mulheres vivas”. Em Nosedive o descontentamento do social rating system parece inexistente na personagem principal, no entanto há personagens que surgem, pontualmente, com a mesma postura reivindicativa que Betty Friedan incorporava, descreditando por completo a implementação de tal sistema social. O irmão de Lacie é um destes personagens. “Ryan” (interpretado por James Norton) surge algumas vezes no episódio com o papel conferido ao espetador: altamente cético em relação ao sistema em que a sociedade se molda e crítico em relação à forma como as pessoas interagem umas com as outras para subirem na hierarquia digital. A postura de Ryan não incorpora somente a desconfiança e distanciamento em relação à forma como as novas tecnologias mutam a sua irmã, a própria cor da indumentária é simbólica (figura 56). Apesar do diretor deste episódio, Joe Wright, Figura 48 - Fachada central das casas em "Nosedive". Video still 00:01:23. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 86 pretender um cenário distópico imaculado, perfeito a nível de fotografia e com tons pastel que adornam todo o cenário52, a verdade é que todos os personagens da série que apresentem traços de pirronismo53, que tenham uma certa relutância ao sistema de cotação social ou que imponham qualquer tipo de autoridade sob a sociedade, são caracterizados por um vestuários mais escuro. Durante a jornada que Lacie percorre para atingir o 4.5 no sistema de ranking social, é interdita de viajar de avião devido à baixa cotação social sendo expulsa do aeroporto por um segurança (figura 57). O segurança, um personagem que impõem autoridade e que tantas vezes é associado a uma conduta mais controvérsia, apresenta-se com um uniforme mais escuro que o dos restantes personagens, apesar de contrastar com a boa disposição e fácies sorridente, quando expulsa uma pessoa do aeroporto. Mais uma vez, este segmento do episódio revela a imperatividade das aparências em detrimento da revelação dos reais sentimentos. Outro dos aspetos que incorpora a gestão entre o estrangement e o conhecimento empírico, é a paleta de cores. O esquema cromático com tons claros (que normalmente remetem à 52 Consultado a 05.09.18, através de http://laist.com/2016/10/27/pastel_black_mirror_nosedive.php#photo-1 53 Doutrina filosófica que tinha por base a dúvida em absoluto, costume de duvidar. Figura 49 - "Ryan" (à esquerda) de azul escuro. Video still 00:02:15. Figura 50 - Segurança do aeroporto. Video still 00:29:15. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 87 tranquilidade e ao bem-estar) contrastam com a temática escura, subvertida e distópica a que o episódio alude, semeando no espetador uma ideia de estranheza. Aquilo que o público reconhece, o sentimento tradicional que certas cores transmitem (que será escrutinado mais adiante), é alojado numa situação desconcertada da sua aceção normal. Ao contrário dos restantes episódios da série antológica, Nosedive é uma ode aos acordes cromáticos54 e aos consequentes sentimentos ou sensações contrárias que fazem suscitar. As muted colors55 e os tons pastel que o compõem, transmitem a sensação de tranquilidade, calma e serenidade aos personagens, ao mesmo tempo que reforçam o ambiente “plástico” e fútil do panorama social em que o episódio se desenrola. Ao longo da narrativa Lacie percorre os 4.5 pontos de social rating necessários para subir na vida, no entanto, o caminho até lá é ornamentado de pequenos percalços. Quando estes se multiplicam, a sua cotação começa a descer a pique e a palete de cores, outrora mais clara e leve, torna-se mais escura e pesada. Para se poder criar uma relação entre as cores escolhidas e o seu significado, recorreu-se à obra “A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão” (2017) de Eva Heller. Num estudo conduzido a duas mil pessoas alemãs, Heller (2017) pode confirmar que o “azul” é a cor que acalma, aquela que é associada a todos os sentimentos positivos, nomeadamente a compreensão mútua e a fidelidade (Heller, 2017, sp). Estes sentimentos podem ser relacionados com a figura 58, onde “Lacie” e uma conhecida do prédio onde trabalha iniciam uma “conversa de elevador” livre do constrangimento habitual devido à quantidade de informação que a rede social providência. 54 “Um acorde cromático é a relação entre cores que estão associadas a sentimentos similares. 55 Tal como no som, as cores também podem ser mudas. Este processo caracteriza-se por adicionar tons de branco ou de cinza claro a uma cor por forma a que ela perca o seu brilho e se torne mais suave. Link para consulta: https://www.hometeka.com.br/inspire-se/muted-colors-uma-tendencia-que-tem-muito-a-dizer/ Figura 51 - Paleta de cores “1” do início do episódio. # B2C9ED; # B3ADBC; # AE9495; # 5A7090; Video still 00:05:58. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 88 O social rating system ao providenciar uma lente de contacto aos seus utilizadores torna possível a identificação e a navegação entre perfis pessoais sem recorrer ao telemóvel, daí a que ambas as desconhecidas iniciem uma conversa como se se conhecessem há muito tempo. A small talk é caracterizada pela lisonja mútua que atua com a pretensão de arrancarem uma pontuação de 5 estrelas a cada uma. Num emaranhado de fidelidade para com o sistema de classificação social e com um background azul, ambas as desconhecidas parecem estar numa pequena e perfeita bolha social que asfixia qualquer possibilidade de autodeterminação humana. Outra das cores que se destaca na figura 58 e 59, e que é transversal a toda a primeira metade do episódio, é o “rosa” e as suas tonalidades. Segundo Heller (2017), o rosa é “(…) infantil, gentil, suave e pequeno” (sp), é a cor da juventude e da imaturidade, tal como o “verde”. O “verde” é a cor daquilo que é precoce e ainda por maturar (Heller, 2017, sp). Tal como na natureza, um fruto verde está impróprio para consumo porque ainda não atingiu o ponto de amadurecimento fulcral, característica esta que pode ser trasladada para os tons de verde da figura 59 e 60. Na figura 59, o “verde” ganha destaque com o personagem mais à direita, um cidadão que, tal como todos os outros, está constantemente a utilizar aplicação de social rating, testemunhando a domesticação daquele tipo de sistema social. O figura 59 é um autêntico episódio mundano de um presente alternativo. A figura 60, os tons de “verde” suave que envolvem o cenário podem ser vistos como indicadores de “imaturidade”. Nesta cena, Lacie está prestes a comprometer-se a atingir um certo valor de social rating por forma a poder comprar uma casa que a agente imobiliária lhe está a impingir. Apesar de não reunir as condições para ficar com o imóvel, o personagem principal compromete-se a ficar com a casa – uma decisão imatura, tal como o “verde” suave Figura 52 - Paleta de cores “2” do início do episódio. # E1DDF2; # C2B2B1; # BFACB9; # BA9A9A. Video still 00:03:11. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 89 da mesa. O “verde” não simboliza apenas a imaturidade, é, tal como o azul, uma cor que acalma, que “(…) alegra a vista, sem cansá-la” (Plinius, citado em Heller 2017, sp). Apesar de ser conotado desta forma, o “verde” para Wassily Kandinsky (2010) sugere um significado diferente, um que se identifica mais com a atmosfera distópica que Nosedive apresenta: (…) o verde absoluto é a cor mais tranquila que existe: não se move em direção alguma e não se faz acompanhar por qualquer tom de alegria, tristeza ou paixão; (…) depois de algum tempo, esse sossego vai-se tornando monótono. (…) esse verde é como uma vaca gorda deitada, muito saudável e imóvel, preocupando-se apenas com o ruminar, contemplando o mundo com um olhar letárgico (…) (Kandinsky, 2010 citado em Heller, 2017, sp). Apesar de não estarem evidenciados ao longo do episódio, o “branco” e o “cinza” são as cores utilizadas para criarem os tons pastel que tingem o episódio e as definições avançadas por Heller em relação à sua conotação assumem-se bastante pertinentes. Em relação ao “branco”, Heller (2017) destaca a sua leveza e o vazio, “(…) onde o branco está, nada está” (sp). O branco está associado à inexistência e “(…) em sentido figurado, o vazio associa-se à ausência de sentimentos” (sp), tal como aparentam os personagens do episódio. O “cinzento” apresenta uma conotação similar à do “branco”. Heller (2017) argumenta que é uma cor sem caráter e sem força, onde o nobre “branco” está sujo e o poderoso “preto” está enfraquecido (sp). O “cinza”, tal como os personagens de Nosedive “(…) é conformista, dá com tudo – com tons claros ou escuros (…)” (sp) - nunca consegue encontrar um lugar na paleta de cores e neste caso, o personagem principal também não consegue encontrar um sitio que a acolha. Vive com o irmão, mas ambiciona viver sozinha numa casa em “Pelican Cove” – uma edição limitada de vida (figura 61). Figura 53 - Paleta de cores “3” do início do episódio. # 5A7090; # B3B6C5; # B3AFA9; # 717672. Video still 00:09:43. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 90 Este cartaz publicitário é outro dos elementos que revelam o equilíbrio entre o estrangement ou uncanny devido à implementação de algo reconhecível por todos - como é o caso de um billboard publicitário – mas com a diferença de que este cartaz publicitário, utiliza a imagem dos possíveis compradores como figurinos de uma vida perfeita e de edição limitada. A segunda metade do episódio apresenta-se com uma paleta de cores completamente diferente daquela que dá início ao episódio. As cores suaves são agora suplantadas por tons mais escuros, bem como as cores frescas e subtis da “manhã” são substituídas pelos tons da “noite” como o “azul escuro” e principalmente o “preto”. O “preto” é a cor que mais se evidencia porque a sua mistura com qualquer cor, resulta no desvirtuamento das qualidades iniciais dessa mesma cor, fator esse que também é demonstrado pela própria linguagem como é o exemplo da expressão: “a coisa está preta”, fazendo alusão a um acontecimento difícil de ultrapassar ou a uma situação desagradável. O “preto”, portanto, “(…) é o fim (…), tudo termina em preto: a carne decomposta fica preta, assim como as plantas podres” (Heller, 2017, sp). O preto é a cor da negação, do obscuro, da noite, do cruel e maldoso, é a cor dos vilões e consequentemente dos poderosos (Heller, 2017, sp). A cor preta tem a capacidade “(…) de transformar todos os significados positivos de uma cor no seu oposto negativo” conseguindo ainda “(…) reverter todos os valores de uma determinada cor (…)” (ibid.). A figura 65 retrata o momento em que Lacie, vendo-se privada de viajar de avião devido ao seu baixo social rating, desloca-se até a uma empresa de aluguer de carros. Nesta cena, já é de noite e os tons que consequentemente o adornam são mais escuros. Acarretando toda a carga negativa a que Heller (2017) se refere quando disserta acerca do “preto”, aqui torna-se possível criar uma analogia entre a frustração de Lacie e as cores escuras bem como é possível efetuar-se uma comparação entre o ambiente cromático do aeroporto vs. a empresa que aluga carros (figura 62 e 63). Figura 54 - "Pelican Cove: Limited Edition Living”. Video still 00:10:22. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 91 Como se pode verificar nas figuras 62, 64, e 65, o ambiente cromático da narrativa torna-se substancialmente mais escuro, aludindo a um período conturbado na jornada de Lacie. A figura 64, transporta o espetador para um ambiente hostil através dos tons de azul metálico que circunscrevem o frame, acarretando sentimentos de frieza e de desconforto (Heller, 2017, sp). Figura 55 - Paleta de cores “1” do final do episódio. # 908F81; # 4E4556; # 39313B; # 00001B. Video still 00:30:18. Figura 56 - Paleta de cores do aeroporto. # B5C0D3; # 92838D; # 648E99; # 4A6E8A. Video still 00:27:26. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 92 Neste momento, Lacie após ficar sem bateria no carro que alugara, vagueia pela estrada enquanto pede boleia para ir ao casamento da sua “melhor amiga” que já lhe dissera que não poderia ir, devido ao seu baixo rating. Mais uma vez verifica-se a sobreposição do sistema de cotação social às relações humanas. A pessoa que lhe oferece boleia é “Susan”, uma personagem que conhecia bem o que era lutar por um rating alto e que se oferece para a fazer chegar ao seu destino apesar de a advertir em relação ao objetivo doentio que “Lacie” percorre. Na figura 68 destaca-se as escadas de cor “amarela” ferrugenta. Quer a cor, quer o objeto são altamente simbólicos. O amarelo para Heller (2017) é a cor do otimismo que, tal como o sol, age de modo alegre e revigorante (sp). As escadas, simbolicamente, remetem para o salvamento, para o auxílio e para alavancar alguém de uma situação indesejada, que é exatamente o que se passa nesta parte do episódio. Antes do desfecho final do episódio e após Lacie ter conseguido trespassar para a zona onde o casamento da sua melhor amiga se desenrola, começa a discursar à cerca da “amizade” que tinha com a noiva até ser intercetada pelos seguranças da festa. A figura 65 é adornada por cores mais escuras, criando uma relação com o vestido sujo de Lacie e com a maquilhagem completamente arruinada. O vestido, outrora “rosa” imaculado, está agora manchado de preto e de castanho, cores que remetem à sujidade e ao declínio (Heller, 2017, sp). Os próprios seguranças que a arrastam para o exterior do casamento antes de ser encarcerada estão de cinzento, a cor sem carácter e que tem dificuldade em se posicionar no espectro cromático. O próprio tom rosa pastel da pele de Lacie está igualmente mais escuro e pesado, evocando o espetador para um personagem despedaçado, em desespero e aflição. Figura 57 - Paleta de cores “2” do final do episódio. # 6C5742; # 443339; # 241F39; # 080713. Video still 00:37:45. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 93 O episódio termina com Lacie presa devido ao facto de ter chegado ao valor 0 da escala de cotação social. Já encarcerada, Lacie é colocada numa cela em frente a outro personagem, dando a sensação de confronto, como se de um stand-off western se tratasse (figura 66). As linhas brancas que dividem a figura 68 em três, servem de reforço a esta ideia de confronto, justamente porque Lacie tornou-se em tudo aquilo que não cria: um ser humano que, aos olhos deste sistema de classificação social, não está apto a viver em sociedade porque possuí características que a diferenciam dos outros. A imagem pode ser contemplada como um espelho que reflete tudo o que é de positivo e inerente à condição humana, como é o caso da singularidade e a imprevisibilidade, mas que é subvertido por um sistema de cotação social que obriga as pessoas a adotarem uma postura indiferenciada, se pretenderem ser aceites nesta sociedade. Os tons de cinza que adornam a sala, mais uma vez, remetem a uma prisão sem carácter, um espaço sórdido, imundo e hediondo que apenas é utilizado para reter pessoas que têm traços de um carácter forte ou que não concordam com o sistema social que está estabelecido. O personagem mais à direita não se chega a apresentar, é Figura 58 - Paleta de cores “3” do final do episódio. # 534D4C; # 513726; # 593E3D; # 1A1816. Video still 00:56:59. Figura 59 - Paleta de cores do final. Esquerda: # A29499; # 8A7278; # 6B666C; # 000000; Direita: # 524F56; # 57575E; # 091217; # 000000. Video still 01:00:18. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 94 apenas uma mera pessoa que apenas partilha algo em comum com Lacie, ambos chegaram ao valor 0 e não estão aptos a viver em sociedade. A cor preta que por Heller (2017) é entendida com uma conotação negativa, aqui acarreta uma característica de “poder”, de alguém lúcido e confiante (Heller, sp), tal como o personagem mais à direita se encontra após ter concluído que aquele sistema está estragado. Ao longo do episódio, é possível verificar uma das características também presente nesta figura: a evolução da cor do vestido de Lacie (figura 67). Figura 60 - Paleta de cores do vestido de "Lacie" em "Nosedive", As cores (da esquerda para a direita): # D2C1C0; # C2B2B1; # BFACB9; # BA9A9A; # AE9495; # 92838D; # 593E3D; # 443339. Pode verificar-se que a cor rosa vai ficando cada vez mais escura que, tal como Lacie, é afetada pelo meio envolvente e estado de espírito da personagem principal. O vestido assume-se assim como um papel de tornessol psicológico exímio, que permite aferir o estado mental e social de Lacie no decorrer do episódio, quando comparado com as definições elencadas por Heller (2017). Os tons de rosa claro, outrora infantis, íntimos, gentis e suaves transformam-se em tonalidades mais escuras que, tal como a cor “preta” incorporam características conotativas negativas, mas ao mesmo tempo de poder. O contraste entre a paleta de cores do início e do final do episódio, evidencia com precisão a turbulenta viagem a que Lacie se submeteu (figura 68), bem como espelha o lado mais obscuro da sociedade quando é forçada a agir segundo parâmetros sociais que terceiros orquestraram. O ser humano é o expoente máximo da imprevisibilidade e da autodeterminação cognitiva, daí a que não existam pessoas iguais. Esta ideia é oposta à sociedade de Nosedive, revelando como a sociedade se comportaria se soubesse que estava a ser observada e que as suas ações iriam resultar em consequências. Figura 61 - Paleta de cores do início do episódio (à esquerda) contrastando com a paleta de cores do final do episódio (à direita). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 95 Este tipo de análise foi realizado a fim de se demostrar que o exercício especulativo não tem como pretensão substituir as técnicas inerentes ao aclamado “design tradicional” da coluna “A” de Dunne & Raby (2013). As ferramentas que são utilizadas pelo “design tradicional” mantêm a sua utilidade, enquanto as premissas que guiam o design especulativo se assumem mais, como uma possível postura ao design do que, propriamente, uma nova vertente (Dunne & Raby, 2013, p. vi). Esta análise de cor entra no campo do estrangement vs. conhecimento empírico porque fornece ao espetador a utilização de técnicas tradicionais de design, ao mesmo tempo que providencia uma panóplia de aceções, críticas, reflexões e duplas significações. O exercício especulativo, assume-se, portanto, como um género de meta-design em que as suas pretensões seguem o caminho da reflexão sobre e para design, ao mesmo tempo que adverte para um tipo de design mais pessoal, cultural e comunitário, distanciando- se das exigências económicas e da geração de lucro. A última característica inerente ao exercício especulativo que se vai analisar neste episódio, refere-se ao iv) Objetos diegéticos e domesticação do futuro. Para que as suas funções sejam identificadas pelo público, a sua aplicabilidade tem que estar enquadrada numa situação que seja reconhecida pelo público, por forma a que o processo de familiarização seja imediato (Auger, 2013, pp. 2-4) e que possa suspender a descrença sobre mudança (Sterling, 2012 citado por Bosch, 2012). Em Nosedive os objetos que ganham preponderância devido à sua utilização constante são a lente de contacto que permite identificar as pessoas desta sociedade (figura 69) e o smartphone que permite classifica-las (figura 70). Figura 62 - Lente de contacto como objeto diegético em Nosedive. Video still 00:01:56. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 96 A lente de contacto assume-se como o sistema de identificação social e é utilizado por toda a sociedade. Este sistema primeiramente faz a “leitura” facial de uma pessoa para que depois o seu nome e a consequente classificação social seja apresentada (figura 71 e 72). Figura 63 - Aplicação do sistema de cotação social em Nosedive. Video still 00:03:19. Figura 64 - Sistema de identificação facial da lente de contacto. Video still 00:03:28. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 97 Este sistema permite que todos as pessoas possam relacionar o fácies, com um perfil na rede social. Esta funcionalidade permite que todas as pessoas conheçam o dia a dia de toda a gente, porque a comunidade de Nosedive depende da classificação social para poder ter acesso a certas regalias, daí a que a atualização constante do seu perfil pessoal seja uma constante. A figura 73 permite aferir como o sistema opera quando se consulta do feed de um utilizador enquanto a figura 74 demostra que a aplicação é responsiva, devido à adaptação que realiza quando a informação tem que ser ajustada com a presença de um cidadão. Figura 65 - Sistema de identificação facial da lente de contacto. Video still 00:03:29. Figura 66 - Layout do sistema de cotação social. Video still 00:05:27. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 98 O sistema de classificação dispõe de uma mecânica de gestos bastante idêntica àquela a que estamos habituados a utilizar quando manuseamos um smartphone. Os movimentos “swipe up” e “swipe right”56 são os que se destacam durante a interação com os dispositivos em Nosedive. O “swipe right” é utilizado para escolher a pontuação que se deseja atribuir ao post ou a essa mesma pessoa (figura 75), enquanto o movimento “swipe up” serve para fazer o upload de fotos ou para “Enviar” a cotação para uma pessoa (figura 76). No episódio, ainda é possível verificar que o sistema de cotação opera como se fosse um organismo, estando em constante atualização. Cada vez que se recebe uma pontuação, quer seja referente a um post ou à própria pessoa, recebe-se uma notificação e a pontuação da pessoa avaliada (“You’ve benn rated”57) oscila consoante a pontuação que lhe fora atribuída (figura 77). 56 Expressões em inglês que significam “deslocar para cima” e “deslocar para a direita”. As setas inseridas nas figuras 75 e 76 foram implementadas para facilitar a observação dos movimentos gestuais necessários para interagir com a aplicação de cotação social. 57 Expressão inglesa que significa em “Foi avaliado”. Figura 67 - Responsividade sistema de cotação social. Video still 00:05:53. Figura 68 - Mecânica gestual: "swipe right" para classificar um post. Video still 00:03:21 e 00:03:23 (respetivamente). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 99 Figura 69 - "Swipe up" como signo de "upload". Video still 00:04:43 e 00:04:45 (respetivamente). O layout, a interface e a forma como este sistema opera poderia ser um sistema modelo para uma sociedade utópica, no entanto, como já foi verificado, o Estado chinês já lançara um sistema com um mecanismo idêntico. Apesar da semelhança, o dispositivo móvel assume-se como um fragmento de uma possível realidade caso fosse implementado tal sistema de cotação social. Assistido pelo entendimento convencional e utilização exaustiva dos smartphones e dos sistemas de cotação, o dispositivo móvel apresenta formas e tipologias familiares ao utilizador, de maneira a que a sua apresentação surja subvertida do seu contexto de utilização (Malpass, 2017, p. 93). Johannessen (2017), na sua configuração acerca das “práticas do design crítico e especulativo”, também evidencia normativas basilares que auxiliam a transmissão de uma crítica através de objetos diegéticos, como é o caso da “(…) materialização de um cenário de utilização, do formato do objeto e o nível de detalhe que o objeto tem que incorporar para fazer suscitar uma reação pública (…)” (pp. 9-10). Figura 70 - Oscilação da cotação social em Nosedive. Video still 00:04:58 e 00:04:59 (respetivamente). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 100 4.3 Justificação da escolha dos episódios e categorização dos episódios Nas obras literárias de Darko Suvin, Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre (1979), e de Carl Freedman, Critical Theory and Science Fiction (2000), os autores procuram articular os conceitos de “teoria crítica” e de “ficção científica”, tentando estabelecer uma relação conceptual entre o universo crítico e a ficção científica. Suvin (1979) procura criar um esquema conceptual que auxilia o entendimento da “ficção científica”, providenciando ao leitor os conceitos de estrangement (ou uncanny), depois sugerido por Auger (2013), cognição e dialética, a passo que Freedman (2000), com o objetivo de fundamentar o seu argumento de que a “ficção científica” é um substrato privilegiado da teoria crítica, recorre à análise de obras que considera importantes no espetro da literatura moderna de ficção científica. Todavia, o ingresso pela obra de Freedman (2000) foi resultante das suas definições de “teoria crítica” e de “ficção científica” que se assumem como complementares para o entendimento do conceito design fiction e consequente analogia com White Christmas ou Nosedive. Segundo Freedman (2000), a teoria crítica poderá ser entendida como um pensamento dialético, que contempla a totalidade do mundo humano ou a sociedade como objeto de estudo (p.8). Esta teoria revela constantemente que as ideias, das quais temos conhecimento acerca do mundo, não são aquilo que aparentam, mas também revela que os conceitos que incrustamos a determinados objetos não são imutáveis acarretando, portanto, uma componente acutilante na esfera social por subverter as conceções atribuídas a um conceito (ibid.). É precisamente neste segmento da definição, a subversão de conceitos e ideias, que a temática se aproxima da ficção científica, justamente por ser utilizada como um veículo crítico. Para Suvin (1979), “ficção científica” apresenta-se como: um género literário cujas as necessidades e condições suficientes [para o seu surgimento], são a presença e interação do estrangement e da cognição, cujo o instrumento principal (...) é uma imaginação alternativa da conceção do meio empírico do autor (Suvin, 1979, pp. 7-8). Suvin (1979) considera que o uncanny “(…) diferencia a ficção científica da literatura “realista de massas” enquanto a cognição “diferencia a ficção científica não só do mito como também dos contos, da fantasia” (p.8). A par desta definição, Freedman (2000) considera que Suvin (1979) traduz uma definição de ficção científica nas entrelinhas, revelando que “a ficção científica é determinada pela dialética entre o estrangement e a cognição” (Freedman, Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 101 p.16). A figura 7858 foi concebida segundo a perspetiva do autor, representando algumas das características subjacentes ao conceito de “ficção científica”. Uncanny (ou estrangement) refere-se à criação de um mundo ficcional que, ao recusar a nossa vivência mundana como adquirida, implícita ou explicitamente, realiza uma interrogação “crítico-estranha” (Freedman, 2000, p.17). Porém, o carácter “crítico” da interrogação é garantido pela cognição59, que permite à ficção científica “responder” de forma racional ao mundo que é proposto bem como evidencia o que une e o que separa a nossa conceção empírica do mundo daquele que a ficção científica propõem (ibid). Se a dialética for calcada ao plano da cognição o resultado seria uma ficção científica mundana, realista, que não criava “estranheza” ao público e, portanto, não seria “ficção” (Freedman, 2000, pp. 17-18). Por outro lado, se a dialética for suplantada ao campo do uncanny resultará em fantasia, que cria “estranheza”, ou aparenta “estranheza”, mas de uma forma irracional e ilegítima, podendo correr o risco do público não conseguir relacionar o que é apresentado com qualquer tipo de conhecimento empírico que tenha adquirido ou a que consiga relacionar (ibid.). Da mesma forma que Auger (2013) enfatiza a gestão do uncanny, Freedman (2000) complementa a sua teoria com a importância da gestão da cognição, culminando em dois fatores imprescindíveis para o desenvolvimento de projetos em design fiction. Em ambos os episódios selecionados, a gestão quer do estrangement quer do conhecimento empírico estão altamente equilibrados porque os episódios decorrem num ambiente completamente reconhecível ao público. O vício da consulta constante dos smartphones, a comunicação entre assistentes virtuais e a utilização de objetos que ostentem uma I.A., não são completamente novas, porque é possível estabelecer ligações entre o mundo da ficção científica de White Christmas e Nosedive com a realidade que nos envolve, culminando num tipo de exercício especulativo apelidado de design fiction. Este tipo de exercício permite ao designer criar protótipos do futuro, seja através de objetos, de aplicações ou de outros, que podem servir para ajudar a perceber como o futuro se poderá erguer, fazendo questão de revelar ao público as suas ideologias. Este tipo de design mais orientado para as questões que 58 Da autoria do candidato a mestre em Design de Multimédia. 59 Processo mental pelo qual se adquirem conhecimentos; informação que adquirimos graças à experiência. Figura 71 - Esquema que situa as características subjacentes a Science Fiction. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 102 envolvem a sociedade era o que Simon (1996) pretendia quando se referia ao papel que os designers poderiam ter no ordenamento e disposição de uma cidade. O design fiction, tal como o design especulativo, encarrega-se de prestar um serviço que obriga a população a refletir sobre o futuro bem como fomenta o ceticismo e o espírito crítico da comunidade em relação aos progressos científicos e tecnológicos. Estas características são transversais às pretensões que o design especulativo almeja, no entanto, este tipo de abordagens mais direcionadas para conteúdos audiovisuais, consegue chegar a mais pessoas. Os episódios selecionados, não são somente conteúdo audiovisual, fazem parte de uma série televisiva, que acarreta ainda mais público e estando agora alocada no gigante norte-americano Netflix, o número de pessoas que assistem à serie torna-se ainda maior. Este formato audiovisual em conjunto com a distribuidora e com um enredo acerca de futuros distópicos resultam numa congregação perfeita de estímulos, incentivos e gatilhos que façam espoletar a tão ambicionada reflexão social que o design especulativo e fiction percorrem. As abordagens que espelham as pretensões do exercício especulativo quando são alocadas neste tipo de conteúdo têm sempre maior probabilidade de ser absorvidas do que se estiverem alocadas em exposições ou a grupos fechados. Tal como os episódios de Black Mirror selecionados neste capítulo, a definição de design fiction que James Langdon deu a Francisco Laranjo numa entrevista datada de 2015, revela que esta área do design “(…) não se foca no impossível nem nas visões futurísticas, mas sim na multiplicidade de possibilidades que uma simples decisão (…)” (James Langdon, citado em Francisco Laranjo, 2015) acarreta, quando se é responsável pelos avanços científicos e tecnológicos. Desta forma, a dimensão que esta temática incorpora justifica o facto desta investigação não ter sido somente conduzida pelo escrutínio dos produtos inerentes aos episódios, nem à forma como a narrativa foi concebida ou como ela atua como um veículo reflexivo, foi, pois, guiada pelo resultado que todas estas características congregadas originam. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 103 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 104 Conclusão No decorrer da presente dissertação averiguaram-se os diferentes prefixos, formas e nomenclaturas que o design adota da teoria crítica quando pretende incorporar uma dimensão cética e reflexiva aquando da sua atuação. O design crítico é utilizado para espelhar a posição cética que um designer adota em relação a uma determinada problemática social que, por norma, culmina na concretização de projetos que colocam em cheque as conceções, crenças e ideologias intrínsecas a uma determinada linha de pensamento. O design crítico utiliza a especulação como catalisador de reflexão social, de maneira a que possa sugerir formas alternativas de um paradigma científico-tecnológico. O design especulativo preocupa-se, portanto, com as possíveis alterações que estas áreas podem fazer espoletar, presenteando à sociedade cenários hipotéticos do caminho que percorrem. Este tipo de postura ao design é igualmente verificado no design associativo, onde se pretende criticar o burocrático processo à jusante de qualquer projeto de design industrial. Esta postura, também aclamada por design for designs sake, é a que menos contribui para esta área do design que, devido ao seu enfoque, encurta a visão pan-óptica que o design deve acarretar, negligenciando a sua posição como possível dinamizadora social como Simon (1996) pretendia. Reivindicando o papel a que, quer o design, quer o designer estavam submetidos, o design especulativo, fiction e principalmente o discursivo, pretendiam que a área se transformasse num veículo comunicacional, podendo oferecer à comunidade um verdadeiro serviço público, providenciado por um congregado de profissionais que observa o mundo de uma forma diferente de todos os outros. Durante a dissertação foi possível retirar algumas elações que circunscrevem esta temática. Quando se desenvolve um projeto desta índole, há que atentar que as pretensões desta área do design, nem sempre são alcançadas devido à possível dessincronização, entre o conhecimento empírico de uma determinada comunidade e a crítica subjacente a um projeto de design crítico e especulativo. Por forma a que este desentendimento não suceda, é importante que a crítica esteja enquadrada numa realidade que uma comunidade entenda. Para além disso, o conhecimento tecnológico e social que determina a eficácia destes projetos e a gramagem correta entre o estrangement e a cognição são de igual relevância, tal como a primeira mostragem do projeto Afterlife (2001-2009) de Auger & Loizeau (2001-2009) no MoMA demonstrou. Independentemente das diferentes nomenclaturas que estas áreas do design podem assumir, é importante salientar que o design associativo, fiction e discursivo, partilham a mesma base conceptual do design crítico e especulativo, no que concerne à postura reflexiva, crítica e cética que imprimem nas suas atividades. Apesar desta verossimilhança, o design associativo pretende colocar em causa os métodos de produção inerentes ao design industrial, mas o design discursivo já incorpora outra dimensão. Para Mitrović (2015), este tipo de design encontra-se a jusante do design crítico e a montante do design tradicional. O design Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 105 discursivo tem como pretensão comunicar através do design e utilizar a linguagem intrínseca aos seus métodos para transmitir uma ideia, mas não necessita, propriamente, de ser uma comunicação crítica. Desta forma, o design fiction e o design especulativo são as áreas que mais se aproximam uma da outra, excetuando o facto de uma se apropriar da ficção científica e do universo do cinema para conseguir materializar as suas críticas, enquanto a outra aloca as suas pretensões em objetos diegéticos e em narrativas mundanas. A área da ficção científica, por sua vez, quando é justaposta com a área do design crítico e especulativo, pode fornecer preciosos instrumentos que auxiliem a fomentar as pretensões desta área. Através da familiarização que o público detém com este género cinematográfico, articulação de narrativas e consequente alocação de possíveis produtos em paradigmas futuros ou alternativos, o design fiction apresenta-se como uma forma alternativa e bastante promissora de colmatar o principal problema inerente a esta prática do design: a gestão do estrangement com o conhecimento empírico. Outra vantagem que esta área dispõe é a liberdade económica. Visto que os produtos expostos neste tipo de narrativas não pretendem ser comercializados, os objetos provenientes deste exercício, são contemplados como objetos diegéticos que conseguem remeter um utilizador familiarizado com o enredo, para um universo de ideias diferente daquele em que está inserido. Como foi possível aferir na análise aos episódios de Black Mirror, o design fiction consegue reunir todas as características da taxonomia conceptual elaborada, podendo-se assumir como uma área que faculta o background perfeito para o desenvolvimento de qualquer projeto de design crítico e especulativo. Para além da abordagem e método diferente, o design fiction anexa ainda a vantagem de conseguir chegar a crítica a um público mais alargado. Não é somente a temática disruptiva e a forma negra e dramática que fazem com que o Black Mirror tenha sido uma série bem-sucedida, é igualmente o facto de estar alojada numa plataforma de streaming em voga, como o Netflix, que consegue reunir imensos espetadores. Com isto, é possível verificar que a combinação das técnicas inerentes à ficção científica com as premissas que guiam a aplicação do exercício crítico e especulativo, resultam no design fiction. Ainda foi igualmente possível verificar que a postura crítica, cética e de pretensão reflexiva é uma constante em todas as variações do design crítico e especulativo. Para Mitrović (2015), o design crítico assume-se como uma variante do design discursivo, apesar deste último não necessitar propriamente, de operar de forma crítica, da mesma maneira que o design crítico, não necessita de ser sempre especulativo. Apesar de alguns autores não criarem qualquer tipo de diferenciação entre as áreas, por partirem todas da mesma base conceptual, algumas dissemelhanças entre elas eram evidentes, daí a que se tivesse rumado a uma investigação que permitisse verificar as suas diferenças. Pretendendo-se contemplar as temáticas abordadas durante a dissertação com um olhar panorâmico, as diferentes nomenclaturas conferidas a esta prática sugerem dois tipos de design diferentes. Dunne & Raby (2013), os grandes impulsionadores desta área, assumem Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 106 uma postura que pretende diferenciar os modos de atuação do “design tradicional” dos do design crítico e especulativo. O aclamado “design tradicional” espelhado na coluna “A” de Dunne & Raby (2013), por exemplo, é afirmativo, pretende resolver problemas, utiliza o design como um processo e está ao serviço da indústria. Por outro lado, as variáveis do design crítico e especulativo operam segundo a coluna “B” do duo britânico, assumem uma postura crítica, pretendem encontrar problemas, utilizar o design como um veículo e estão ao serviço da sociedade. Como ambos afirmam, se a vertente “B” do design não tem pretensão de substituir o design tradicional, justifica-se a cisão entre dois tipos de “design”? Julgamos que não, apesar das diferentes nomenclaturas e definições associadas às diferentes facetas do design poderem auxiliar um entendimento holístico da temática. Partilhando a mesma visão de Tonkinwise (2015), cada vez que se adicionam palavras antes ou depois de “design”, reforça-se a ideia equivocada que o design é apenas uma ferramenta operativa e formatada pela indústria, enquanto devia ser contemplada como uma área transversal a todas as outras, um conceito abrangente e envolvente. Esta abordagem ao design afasta-se e bem (no nosso entender) da esfera industrial que há muito tem estado confinado, permitindo ao design e aos designers concretizar a emancipação do design, estabelecendo-o como um verdadeiro instrumento social. No entanto, tal reivindicação não implica, necessariamente, uma divisão entre dois tipos de design. O design devia ser contemplado com as características inerentes à coluna “A” e “B”, propondo que o manifesto “A/B” fosse adaptado para “A+B”, em que o resultado é design. É certo que a análise desenvolvida aos episódios de Black Mirror partem do pressuposto que existem estas duas perspetivas diferentes no design, no entanto, a abordagem utilizada serviu, sobretudo, para poder ilustrar as suas diferentes formas de atuação, bem como pode servir para demonstrar que as características pertencentes ao design são altamente versáteis. O design, para além da sua possível utilização como catalisador de reflexão social, é uma poderosa ferramenta de social dreaming em que os profissionais da área podem alocar os seus desejos, ambições, medos e ideias através de uma linguagem universal, uma linguagem com “A’s” e “B’s” em uníssono, uma linguagem que já tem nome: design. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 107 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 108 Referências Bibliográficas Al-Mallah, M. H., Alsheikh, A. A., Ioannidis, J. & Qureshi, W. (2011). Public Availability of Published Research Data in High-Impact Journals. PLoS ONE. 6 (9), e24357. doi: 10.1371/journal.pone.0024357 Auger, J. (2013). Speculative design: crafting the Speculation. Journal Digital Creativity. 24 (1), pp. 11-35. doi: 10.1080/14626268.2013.767276 Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70. 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USA: Bad Robot, Jerry Weintraub Productions, Kilter Films e Warner Bros. Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 115 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 116 Anexos Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 117 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 118 Anexo 1. Tipologia e metodologia do Design Practice Tabela 1 – “Taxonomic Matrix” (Malpass, 2017, p. 118). Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 119 Design como Catalisador Reflexivo: Uma abordagem ao design crítico e especulativo (o exemplo de Black Mirror) 120 Anexo 2. Critical Design Practice Figura 72 – “Taxonomy of critical practice” - o modelo apresentado é utilizado para mapear exemplos de acordo com os métodos, táticas, contextos de operação e tipos de critical practice (Retirado de Malpass, 2017, p. 119).