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Authors
Abstract(s)
Introduction: Multiple Sclerosis is one of the most frequent causes of Central Nervous
System disease in young persons. It is associated with cognitive impairment in 70% of
cases, resulting in a diminished quality of life. This systematic review aimed to evaluate if
event-related potentials (ERPs) can be a relevant diagnosis tool of cognitive dysfunction in
MS.
Methods: Four databases were consulted (PubMed, Embase, Scielo and Web of Science)
until March 10th, 2021. The research was made combining keywords, MESH or EMTREE
terms. The inclusion criteria were 1) = 18 years old, 2) diagnosis according to specific MS
criteria, 3) with or without cognitive complaints, 4) independently of the time of diagnosis
and usual medication, and 5) articles written in Portuguese, Spanish, English and French.
Papers should use ERPs, compared with normative values, Scales of Cognitive Evaluation
and/or healthy control groups. The expected outcome was ERPs amplitude and/or latency
variation (P300, N400 and mismatch negativity – MMN).
Results: 425 articles were obtained initially, with 26 articles in the end. P300 was the most
discussed ERP (25 articles), demonstrating a reduced amplitude or an increased latency in
84% of those. N400 was evaluated in one and MMN was addressed in two articles. ERPs
were compared with Mini-Mental State Exam in two of them and with Montreal Cognitive
Assessment in three. Other scales were also compared with ERPs in twenty articles.
Conclusion: MS patients with cognitive impairment demonstrated overall ERP
abnormalities, suggesting that ERPs may be an appropriate diagnostic method for
cognitive impairment in MS.
Introdução A Esclerose Múltipla (EM) é uma das principais causas de disfunção do Sistema Nervoso Central em jovens adultos. Ocorre mais frequentemente em mulheres, entre os 20-40 anos. Fatores imunológicos, genéticos e ambientais têm um papel importante na sua etiologia. A fisiopatologia da EM baseia-se na inflamação crónica, na desmielinização e na perda de neurónios. A última característica é a principal causa de dano neurológico irreversível. Os critérios mais atuais para o diagnóstico de EM são os de McDonald revistos em 2017. Ao longo do tempo têm existido diversos critérios – Schumacher (1965), Poser (1983) e versões anteriores dos critérios de McDonald (2001, 2005 e 2010). Os critérios utilizados na atualidade podem ser aplicados tanto na prática clínica como na investigação e não têm como propósito invalidar diagnósticos prévios com critérios anteriormente aceites. A EM é uma doença crónica e progressiva, podendo manifestar-se nos vários sistemas – motor, urogenital, sensitivo, sensorial e cognitivo. Os principais défices associados à disfunção cognitiva relacionam-se com a atenção, velocidade de processamento, memória e função executiva, evoluindo de forma diferente de doente para doente. Esta manifestação clínica tem um impacto negativo significativo na qualidade de vida dos doentes com EM, requisitando uma adaptação dos cuidadores, dos familiares e da dinâmica laboral e social. Apesar disto, a avaliação da disfunção cognitiva não é realizada por rotina, sendo que algumas barreiras que o pudessem motivar foram identificadas: falta de conhecimento acerca da disfunção cognitiva na EM, estigma associado a esta manifestação clínica, falta de treino dos profissionais de saúde para avaliar este défice neurológico e ainda a falta de recursos financeiros. São necessárias ações para que estas barreiras sejam erradicadas. Existem vários conjuntos de escalas validados para rastrear e avaliação a disfunção cognitiva na EM – Brief Repeatable Neuropsychological Battery (BRN-B), Minimal Assessment of Cognitive Function in Multiple Sclerosis (MACFIMS) e Brief International Cognitive Assessment for Multiple Sclerosis (BICAMS). Relativamente ao tempo de aplicação dos conjuntos referidos, a MACFIMS é a mais demorada (aproximadamente 90 minutos), seguida da BRN-B (aproximadamente 50 minutos) e, por fim, a BICAMS (aproximadamente 20 minutos). Uma vez que a duração recomendada para uma consulta de Subespecialidade em Neurologia (onde se insere a EM) é de 45 minutos para uma primeira consulta e 30 minutos para as seguintes (segundo o Regulamento n.º 724/2019 da Ordem dos Médicos), a aplicação destes conjuntos de escalas cognitivas não é sistemática em todos os doentes. A função cognitiva também pode ser avaliada por entidades neurofisiológicas conhecidas como potenciais evocados de longa latência (PELL), sendo o P300, o N400 ou o Mismatch Negativity (MMN) os mais relevantes na prática clínica. Segundo Dinteren et al (2014), a amplitude do P300 poderá ser relacionada quantitativamente com processos cognitivos a decorrer enquanto que a sua latência estará correlacionada com o processamento da informação em si. Segundo Romero et al (2015), o N400 é associado à linguagem, com os seus componentes neuronais, com características léxicas e contextuais. Por fim, segundo Cheng et al (2013), o MMN relaciona-se com a memória sensorial auditiva. Todos os PELL referidos poderão ser usados no sentido de avaliar a disfunção cognitiva na EM. Objetivo Esta revisão sistemática da literatura (RSL) tem como objetivo responder à questão: podem os potenciais evocados de longa-latência ser uma ferramenta diagnóstica relevante da disfunção cognitiva na EM? A deteção precoce da disfunção cognitiva na EM poderá possibilitar não só o doente, mas também os profissionais de saúde a intervir, por forma a retardar a progressão desta manifestação clínica, recorrendo a opções farmacológicas e não-farmacológicas. A importância desta RSL baseia-se em melhorar a qualidade de vida dos doentes com EM. Métodos Foram incluídos na nossa RSL estudos que abrangeram pessoas com idade igual ou superior a 18 anos, diagnosticadas com EM através dos Critérios de McDonald (de qualquer ano) e/ou de Poser e/ou de Schumacher, com ou sem queixas cognitivas e independentemente da duração da doença e da medicação habitual. Incluímos apenas três PELL – P300, N400 e MMN. Os comparadores escolhidos foram valores normativos dos PELL respetivos, escalas de avaliação cognitiva – nomeadamente Mini-Mental State Examination (MMSE), Montreal Cognitive Assessment (MoCA) e Addenbrooke’s Cognitive Examination (ACE) – e grupos de controlo saudáveis. Os outcomes pretendidos foram a amplitude e/ou a latência dos PELL mencionados. Os estudos selecionados estariam escritos em Português, Espanhol, Inglês ou Francês. Seriam excluídos artigos de revistas não submetidos a revisão por pares, publicações em congressos, revisões da literatura e estudos de caso. Foram utilizadas quatro bases de dados – PubMed, Embase, Scielo e Web of Science, com a data-limite de 10 de março de 2021. A pesquisa foi realizada tendo em conta as especificidades de cada base de dados, utilizando uma combinação de palavras-chave, termos MESH ou EMTREE. Outros artigos relevantes que poderiam não aparecer na pesquisa inicial e que preenchessem os critérios de elegibilidade serão acrescentados aos resultados para uma eventual avaliação integral. Inicialmente, foram eliminados os artigos repetidos e, posteriormente, foi realizada a avaliação de acordo com os títulos e abstracts, por dois autores de forma independente. Finalmente, foi efetuada uma leitura integral dos estudos selecionados e aplicados os critérios de elegibilidade. O Risco de Viés foi avaliado através de Risk of Bias in Non-randomized Studies of Interventions (ROBINS-I) Tool, da Cochrane. A Qualidade dos Artigos foi estimada de acordo com JBI Critical Appraisal Tools. Esta RSL apresenta-se como um estudo qualitativo, analisando os estudos de acordo com o outcome principal, ou seja, a variação da amplitude e/ou latência do P300, N400 ou MMN. Os dados foram considerados relevantes para a nossa RSL quando a comparação entre valores normativos dos PELL, escalas cognitivas ou grupos de controlo saudáveis e doentes com EM foi estatisticamente significativa, isto é, com p<0,05. Resultados Esta RSL teve por base 425 artigos, sendo que 424 foram obtidos através da pesquisa nas bases de dados referidas e um artigo foi acrescentado tendo em conta a sua relevância para a questão que pretendemos responder na RSL. Os artigos duplicados foram eliminados (148), obtendo um novo total de 277 estudos. Destes, 206 foram excluídos através da avaliação de títulos e abstracts, selecionando, assim, 71 estudos para uma leitura integral. Desta avaliação final resultaram 26 artigos que foram incluídos para uma avaliação qualitativa. Nesta RSL foram incluídos 1028 doentes com EM, com a idade média máxima de 50,90 ± 9,09 anos (em Whelan et al (2010)) e mínima de 28,88 ± 9,04 anos (em González-Rosa et al (2011)). Dezanove estudos referiram a duração da doença, variando de 15,2 ± 9,4 meses (em Piras et al (2003)) até 13,8 ± 6,8 anos (em López-Góngora et al (2015)). Expanded Disability Status Scale (EDSS) foi avaliada em vinte e quatro artigos, cuja pontuação variou de 0,87 ± 0,91 (em López-Góngora et al (2015)) até 4,92 ± 2,2 (em Honig et al (1992)). Os critérios de diagnósticos mais frequentemente verificados nesta RSL foram os de Poser – em 462 doentes – e os de McDonald revistos em 2010 – em 300 doentes. Vinte e um artigos indicaram o padrão de EM que os doentes apresentaram, sendo a EM surtoremissão (presente em 695 doentes) o padrão de evolução natural mais referido. Apenas oito mencionaram a medicação habitual dos doentes, sendo que 256 estariam sob tratamentos imunomodeladores e 48 sob tratamentos com outros fármacos direcionados para outras doenças. Vinte artigos recorreram a escalas cognitivas, contudo, apenas dois estudos compararam os PELL com o MMSE e três com o MoCA. Nos estudos que avaliaram o MMSE, apenas Honig et al (1992) demonstraram resultados estatisticamente significativos, comparando as pontuações obtidas pelo grupo de controlo saudável e pelos doentes com EM (menor pontuação). Em Zeng et al (2017) também se verificou a tendência de obtenção de menor pontuação no grupo de doentes com EM, mas a comparação com o grupo de controlo saudável não é estatisticamente relevante. Nenhum artigo avaliou o ACE. As principais escalas cognitivas incluídas nos artigos mencionados foram Beck’s Depression Inventory (BDI), Paced Auditory Serial Addition Test (PASAT) e Symbol Digits Modalities Test (SDMT), em 7, 7 e 5 artigos, respetivamente. Nos estudos que avaliaram o MoCA, as comparações das pontuações obtidas entre o grupo de controlo saudável e os doentes com EM foram estatisticamente relevantes em dois artigos (El-din et al (2016) e Zeng et al (2017)), sendo estas menores do grupo de doentes. Em Gedizlioglu et al (2021), apenas a comparação dentro do grupo de doentes com EM – em período de surtos ou em período de remissão – se demonstrou relevante, sendo a sua pontuação menor durante o primeiro período referido. O P300 foi o PELL mais abordado – estando presente em vinte e cinco artigos –, demonstrando uma amplitude reduzida ou uma latência aumentada em 84% dos estudos (vinte um em vinte e cinco). Destes vinte e um estudos, em 57% (isto é, em doze) verificou-se a variação mencionada dos parâmetros do P300 simultaneamente. Em dezoito estudos foi obtido através da modalidade auditiva, em onze através da visual e os restantes quatro avaliaram as duas simultaneamente. Foi avaliado em dezoito artigos, sendo que, em treze desses estudos foi obtido através do paradigma oddball. A sua amplitude demonstrou-se reduzida em nove estudos, não teve resultados estatisticamente significativos em sete e não foi mencionada em dois. A latência deste PELL verificou-se aumentada em quinze estudos, não teve resultados estatisticamente significativos em dois e diminuiu em um. Destes dezoito artigos que avaliaram o P300 auditivo, oito não demonstraram variação de pelo menos um parâmetro do PELL (amplitude ou latência) e em nove verificou-se uma redução da amplitude e um aumento da latência simultaneamente. P300 visual: Foi obtido em onze estudos, recorrendo ao paradigma oddball em seis desses. A sua amplitude demonstrou-se reduzida em sete artigos, não teve resultados estatisticamente significativos em dois, aumentou em um e não foi avaliado noutro. A sua latência verificou-se aumentada em seis estudos, não teve resultados estatisticamente relevantes em quatro e não foi mencionada em um. Dos onze artigos que avaliaram este PELL na modalidade visual, cinco não demonstraram variação de pelo menos um parâmetro (amplitude ou latência) e em quatro verificou-se uma amplitude reduzida e uma latência aumentada simultaneamente. P300 auditivo: Foi avaliado em apenas um artigo, através da modalidade visual. Neste estudo verificou-se a redução da amplitude e o aumento da latência. MMN: Foi referido em dois estudos, através da modalidade auditiva. Num dos artigos, a sua amplitude não foi abordada e a latência diminuiu. No artigo restante, não foram obtidos dados estatisticamente relevantes. Discussão P300 auditivo: A redução da amplitude e o aumento da latência simultaneamente demonstrou-se em nove dos dezoito artigos, isto é, em 50%. Separadamente, a latência verificou-se prolongada em quinze dos artigos referidos, ou seja, em 83,3%. Apenas um estudo demonstrou a redução da latência deste PELL. Esta diferença poderá relacionar-se com a separação da onda P300 em P3a e P3b e com o facto do P300 auditivo ter sido obtido através do paradigma passive oddball, mais relacionado com P3a, não sendo possível valorizar este resultado à luz dos restantes. Gedizlioglu et al (2021) concluíram que este PELL poderá ser um marcador de disfunção cognitiva durante os surtos, tendo em conta a sua praticabilidade e reprodutibilidade. Pokryszko-Dragan et al (2009) defenderam que os PELL seriam apenas uma ferramenta adjuvante na avaliação cognitiva dos doentes com EM, sendo os testes neuropsicológicos os principais métodos diagnósticos. Contudo, em 2016, concluíram que o P300 seria um método mais adequado para avaliação da disfunção cognitiva, tendo em conta que seriam mais objetivos e dariam uma avaliação global, contrariamente às escalas cognitivas. Waliszewska-Prosól et al (2018) sugeriram que o P300 auditivo seria um índice de disfunção cognitiva subtil, uma vez que todos os doentes obtiveram resultados normais através de testes neuropsicológicos, demonstrando que os doentes não apresentariam défices cognitivos detetáveis pelas escalas cognitivas. Por fim, Zeng et al (2017) reforçaram a importância deste PELL tanto na investigação como ferramenta complementar na prática clínica, relacionando-o com o MoCA na EM. P300 visual: Em onze artigos, quatro demonstraram uma amplitude reduzida e uma latência aumentada deste PELL simultaneamente, isto é, em 36,4%. Separadamente, a amplitude verificou-se diminuída em 63,6% dos estudos e a latência prolongada em 54,4%. Um estudo relevou uma variação diferente – o aumento da amplitude. Neste artigo, o P300 visual foi obtido através de imagens de Kanizsa, ou seja, não foi usado o paradigma mais frequente. Artemiadis et al (2018) confirmaram a relação entre a BICAMS e o P300, inferindo a importância deste PELL como indicador da função cognitiva. Magnié et al (2007) sugeriram que as variações dos parâmetros deste PELL antecediam as demonstradas pelo P300 auditivo e que ambas se verificavam previamente às alterações nas escalas cognitivas. Para além disto, em Magnié et al (2007) é reforçada a importância de incluir este PELL no diagnóstico e no follow-up da disfunção cognitiva na EM, antes que esta seja demonstrada pelos testes neuropsicológicos. Finalmente, Piras et al (2003) demonstraram a relevância deste PELL numa perspetiva diferente – quando a incapacidade física impossibilita a avaliação da função cognitiva através de escalas cognitivas. N400: Este PELL foi avaliado por Amato et al (2016), revelando uma redução da amplitude e um aumento da latência, através de um paradigma específico – Stroop-Task – que Liotti et al (2000) considera consequência da atividade do córtex cingulado anterior. Milosevic et al (2012) sugeriu que o N400 poderá ser um método indicativo da memória semântica na EM. Uma vez que apenas um artigo mencionou este PELL, não é razoável assumir a sua aplicabilidade como método diagnóstico da disfunção cognitiva na EM. MMN: Jung et al (2006) não avaliaram a amplitude per si, mas sim, a sua área, argumentando que esta seria uma abordagem mais reproduzível. Este parâmetro demonstrou-se reduzido, tal como a sua latência. Jung et al (2006) sugeriram que estas variações – tal como as verificadas no P300 também avaliado neste estudo – poderão ser indicativas de um défice cognitivo subtil durante o período pré-clínico. Em Santos et al (2006) não se verificaram alterações estatisticamente significativas destes parâmetros. Neste estudo, os autores verificaram que este PELL estaria ausente em 40% dos doentes com EM durante o protocolo de variação da duração e em 45% no de variação da frequência. Santos et al avaliaram os doentes com o PASAT e concluíram que a disfunção cognitiva evidenciada por este teste neuropsicológico estaria relacionada com a ausência do MMN. Tendo em conta que este foi o PELL com resultados mais discrepantes na RSL e que apenas foi abordado em dois estudos, não é possível inferir a sua importância diagnóstica na disfunção cognitiva nesta doença específica. A nossa RSL poderá apresentar algumas limitações, nomeadamente, a menor amostra de doentes incluídos, considerando a prevalência mundial da EM, e os escassos dados de MMSE, MoCA e ADE obtidos dos estudos incluídos. Conclusão Os resultados obtidos nesta RSL sugerem que o P300 poderá ser um método diagnóstico apropriado para a disfunção cognitiva na EM, revelando esta manifestação clínica subtil previamente à sua deteção através de escalas cognitivas. Apesar do MMSE, do MoCA e do ACE serem os testes neuropsicológicos mais utilizados na prática clínica, poderão não ser os mais indicados para a avaliação precoce desta manifestação clínica. Os PELL poderão fornecer dados acerca da função cognitiva previamente às escalas cognitivas, o que, aplicado sistematicamente, poderá ter um impacto significativo na melhoria da qualidade de vida dos doentes com EM. Mais estudos comparando os doentes com EM com as escalas cognitivas mais usuais na prática clínica – MMSE, MoCA e ACE – e os PELL mencionados são necessários para implementar estas entidades neurofisiológicas de forma permanente na abordagem clínica à disfunção cognitiva na EM, e não apenas como ferramenta alternativa.
Introdução A Esclerose Múltipla (EM) é uma das principais causas de disfunção do Sistema Nervoso Central em jovens adultos. Ocorre mais frequentemente em mulheres, entre os 20-40 anos. Fatores imunológicos, genéticos e ambientais têm um papel importante na sua etiologia. A fisiopatologia da EM baseia-se na inflamação crónica, na desmielinização e na perda de neurónios. A última característica é a principal causa de dano neurológico irreversível. Os critérios mais atuais para o diagnóstico de EM são os de McDonald revistos em 2017. Ao longo do tempo têm existido diversos critérios – Schumacher (1965), Poser (1983) e versões anteriores dos critérios de McDonald (2001, 2005 e 2010). Os critérios utilizados na atualidade podem ser aplicados tanto na prática clínica como na investigação e não têm como propósito invalidar diagnósticos prévios com critérios anteriormente aceites. A EM é uma doença crónica e progressiva, podendo manifestar-se nos vários sistemas – motor, urogenital, sensitivo, sensorial e cognitivo. Os principais défices associados à disfunção cognitiva relacionam-se com a atenção, velocidade de processamento, memória e função executiva, evoluindo de forma diferente de doente para doente. Esta manifestação clínica tem um impacto negativo significativo na qualidade de vida dos doentes com EM, requisitando uma adaptação dos cuidadores, dos familiares e da dinâmica laboral e social. Apesar disto, a avaliação da disfunção cognitiva não é realizada por rotina, sendo que algumas barreiras que o pudessem motivar foram identificadas: falta de conhecimento acerca da disfunção cognitiva na EM, estigma associado a esta manifestação clínica, falta de treino dos profissionais de saúde para avaliar este défice neurológico e ainda a falta de recursos financeiros. São necessárias ações para que estas barreiras sejam erradicadas. Existem vários conjuntos de escalas validados para rastrear e avaliação a disfunção cognitiva na EM – Brief Repeatable Neuropsychological Battery (BRN-B), Minimal Assessment of Cognitive Function in Multiple Sclerosis (MACFIMS) e Brief International Cognitive Assessment for Multiple Sclerosis (BICAMS). Relativamente ao tempo de aplicação dos conjuntos referidos, a MACFIMS é a mais demorada (aproximadamente 90 minutos), seguida da BRN-B (aproximadamente 50 minutos) e, por fim, a BICAMS (aproximadamente 20 minutos). Uma vez que a duração recomendada para uma consulta de Subespecialidade em Neurologia (onde se insere a EM) é de 45 minutos para uma primeira consulta e 30 minutos para as seguintes (segundo o Regulamento n.º 724/2019 da Ordem dos Médicos), a aplicação destes conjuntos de escalas cognitivas não é sistemática em todos os doentes. A função cognitiva também pode ser avaliada por entidades neurofisiológicas conhecidas como potenciais evocados de longa latência (PELL), sendo o P300, o N400 ou o Mismatch Negativity (MMN) os mais relevantes na prática clínica. Segundo Dinteren et al (2014), a amplitude do P300 poderá ser relacionada quantitativamente com processos cognitivos a decorrer enquanto que a sua latência estará correlacionada com o processamento da informação em si. Segundo Romero et al (2015), o N400 é associado à linguagem, com os seus componentes neuronais, com características léxicas e contextuais. Por fim, segundo Cheng et al (2013), o MMN relaciona-se com a memória sensorial auditiva. Todos os PELL referidos poderão ser usados no sentido de avaliar a disfunção cognitiva na EM. Objetivo Esta revisão sistemática da literatura (RSL) tem como objetivo responder à questão: podem os potenciais evocados de longa-latência ser uma ferramenta diagnóstica relevante da disfunção cognitiva na EM? A deteção precoce da disfunção cognitiva na EM poderá possibilitar não só o doente, mas também os profissionais de saúde a intervir, por forma a retardar a progressão desta manifestação clínica, recorrendo a opções farmacológicas e não-farmacológicas. A importância desta RSL baseia-se em melhorar a qualidade de vida dos doentes com EM. Métodos Foram incluídos na nossa RSL estudos que abrangeram pessoas com idade igual ou superior a 18 anos, diagnosticadas com EM através dos Critérios de McDonald (de qualquer ano) e/ou de Poser e/ou de Schumacher, com ou sem queixas cognitivas e independentemente da duração da doença e da medicação habitual. Incluímos apenas três PELL – P300, N400 e MMN. Os comparadores escolhidos foram valores normativos dos PELL respetivos, escalas de avaliação cognitiva – nomeadamente Mini-Mental State Examination (MMSE), Montreal Cognitive Assessment (MoCA) e Addenbrooke’s Cognitive Examination (ACE) – e grupos de controlo saudáveis. Os outcomes pretendidos foram a amplitude e/ou a latência dos PELL mencionados. Os estudos selecionados estariam escritos em Português, Espanhol, Inglês ou Francês. Seriam excluídos artigos de revistas não submetidos a revisão por pares, publicações em congressos, revisões da literatura e estudos de caso. Foram utilizadas quatro bases de dados – PubMed, Embase, Scielo e Web of Science, com a data-limite de 10 de março de 2021. A pesquisa foi realizada tendo em conta as especificidades de cada base de dados, utilizando uma combinação de palavras-chave, termos MESH ou EMTREE. Outros artigos relevantes que poderiam não aparecer na pesquisa inicial e que preenchessem os critérios de elegibilidade serão acrescentados aos resultados para uma eventual avaliação integral. Inicialmente, foram eliminados os artigos repetidos e, posteriormente, foi realizada a avaliação de acordo com os títulos e abstracts, por dois autores de forma independente. Finalmente, foi efetuada uma leitura integral dos estudos selecionados e aplicados os critérios de elegibilidade. O Risco de Viés foi avaliado através de Risk of Bias in Non-randomized Studies of Interventions (ROBINS-I) Tool, da Cochrane. A Qualidade dos Artigos foi estimada de acordo com JBI Critical Appraisal Tools. Esta RSL apresenta-se como um estudo qualitativo, analisando os estudos de acordo com o outcome principal, ou seja, a variação da amplitude e/ou latência do P300, N400 ou MMN. Os dados foram considerados relevantes para a nossa RSL quando a comparação entre valores normativos dos PELL, escalas cognitivas ou grupos de controlo saudáveis e doentes com EM foi estatisticamente significativa, isto é, com p<0,05. Resultados Esta RSL teve por base 425 artigos, sendo que 424 foram obtidos através da pesquisa nas bases de dados referidas e um artigo foi acrescentado tendo em conta a sua relevância para a questão que pretendemos responder na RSL. Os artigos duplicados foram eliminados (148), obtendo um novo total de 277 estudos. Destes, 206 foram excluídos através da avaliação de títulos e abstracts, selecionando, assim, 71 estudos para uma leitura integral. Desta avaliação final resultaram 26 artigos que foram incluídos para uma avaliação qualitativa. Nesta RSL foram incluídos 1028 doentes com EM, com a idade média máxima de 50,90 ± 9,09 anos (em Whelan et al (2010)) e mínima de 28,88 ± 9,04 anos (em González-Rosa et al (2011)). Dezanove estudos referiram a duração da doença, variando de 15,2 ± 9,4 meses (em Piras et al (2003)) até 13,8 ± 6,8 anos (em López-Góngora et al (2015)). Expanded Disability Status Scale (EDSS) foi avaliada em vinte e quatro artigos, cuja pontuação variou de 0,87 ± 0,91 (em López-Góngora et al (2015)) até 4,92 ± 2,2 (em Honig et al (1992)). Os critérios de diagnósticos mais frequentemente verificados nesta RSL foram os de Poser – em 462 doentes – e os de McDonald revistos em 2010 – em 300 doentes. Vinte e um artigos indicaram o padrão de EM que os doentes apresentaram, sendo a EM surtoremissão (presente em 695 doentes) o padrão de evolução natural mais referido. Apenas oito mencionaram a medicação habitual dos doentes, sendo que 256 estariam sob tratamentos imunomodeladores e 48 sob tratamentos com outros fármacos direcionados para outras doenças. Vinte artigos recorreram a escalas cognitivas, contudo, apenas dois estudos compararam os PELL com o MMSE e três com o MoCA. Nos estudos que avaliaram o MMSE, apenas Honig et al (1992) demonstraram resultados estatisticamente significativos, comparando as pontuações obtidas pelo grupo de controlo saudável e pelos doentes com EM (menor pontuação). Em Zeng et al (2017) também se verificou a tendência de obtenção de menor pontuação no grupo de doentes com EM, mas a comparação com o grupo de controlo saudável não é estatisticamente relevante. Nenhum artigo avaliou o ACE. As principais escalas cognitivas incluídas nos artigos mencionados foram Beck’s Depression Inventory (BDI), Paced Auditory Serial Addition Test (PASAT) e Symbol Digits Modalities Test (SDMT), em 7, 7 e 5 artigos, respetivamente. Nos estudos que avaliaram o MoCA, as comparações das pontuações obtidas entre o grupo de controlo saudável e os doentes com EM foram estatisticamente relevantes em dois artigos (El-din et al (2016) e Zeng et al (2017)), sendo estas menores do grupo de doentes. Em Gedizlioglu et al (2021), apenas a comparação dentro do grupo de doentes com EM – em período de surtos ou em período de remissão – se demonstrou relevante, sendo a sua pontuação menor durante o primeiro período referido. O P300 foi o PELL mais abordado – estando presente em vinte e cinco artigos –, demonstrando uma amplitude reduzida ou uma latência aumentada em 84% dos estudos (vinte um em vinte e cinco). Destes vinte e um estudos, em 57% (isto é, em doze) verificou-se a variação mencionada dos parâmetros do P300 simultaneamente. Em dezoito estudos foi obtido através da modalidade auditiva, em onze através da visual e os restantes quatro avaliaram as duas simultaneamente. Foi avaliado em dezoito artigos, sendo que, em treze desses estudos foi obtido através do paradigma oddball. A sua amplitude demonstrou-se reduzida em nove estudos, não teve resultados estatisticamente significativos em sete e não foi mencionada em dois. A latência deste PELL verificou-se aumentada em quinze estudos, não teve resultados estatisticamente significativos em dois e diminuiu em um. Destes dezoito artigos que avaliaram o P300 auditivo, oito não demonstraram variação de pelo menos um parâmetro do PELL (amplitude ou latência) e em nove verificou-se uma redução da amplitude e um aumento da latência simultaneamente. P300 visual: Foi obtido em onze estudos, recorrendo ao paradigma oddball em seis desses. A sua amplitude demonstrou-se reduzida em sete artigos, não teve resultados estatisticamente significativos em dois, aumentou em um e não foi avaliado noutro. A sua latência verificou-se aumentada em seis estudos, não teve resultados estatisticamente relevantes em quatro e não foi mencionada em um. Dos onze artigos que avaliaram este PELL na modalidade visual, cinco não demonstraram variação de pelo menos um parâmetro (amplitude ou latência) e em quatro verificou-se uma amplitude reduzida e uma latência aumentada simultaneamente. P300 auditivo: Foi avaliado em apenas um artigo, através da modalidade visual. Neste estudo verificou-se a redução da amplitude e o aumento da latência. MMN: Foi referido em dois estudos, através da modalidade auditiva. Num dos artigos, a sua amplitude não foi abordada e a latência diminuiu. No artigo restante, não foram obtidos dados estatisticamente relevantes. Discussão P300 auditivo: A redução da amplitude e o aumento da latência simultaneamente demonstrou-se em nove dos dezoito artigos, isto é, em 50%. Separadamente, a latência verificou-se prolongada em quinze dos artigos referidos, ou seja, em 83,3%. Apenas um estudo demonstrou a redução da latência deste PELL. Esta diferença poderá relacionar-se com a separação da onda P300 em P3a e P3b e com o facto do P300 auditivo ter sido obtido através do paradigma passive oddball, mais relacionado com P3a, não sendo possível valorizar este resultado à luz dos restantes. Gedizlioglu et al (2021) concluíram que este PELL poderá ser um marcador de disfunção cognitiva durante os surtos, tendo em conta a sua praticabilidade e reprodutibilidade. Pokryszko-Dragan et al (2009) defenderam que os PELL seriam apenas uma ferramenta adjuvante na avaliação cognitiva dos doentes com EM, sendo os testes neuropsicológicos os principais métodos diagnósticos. Contudo, em 2016, concluíram que o P300 seria um método mais adequado para avaliação da disfunção cognitiva, tendo em conta que seriam mais objetivos e dariam uma avaliação global, contrariamente às escalas cognitivas. Waliszewska-Prosól et al (2018) sugeriram que o P300 auditivo seria um índice de disfunção cognitiva subtil, uma vez que todos os doentes obtiveram resultados normais através de testes neuropsicológicos, demonstrando que os doentes não apresentariam défices cognitivos detetáveis pelas escalas cognitivas. Por fim, Zeng et al (2017) reforçaram a importância deste PELL tanto na investigação como ferramenta complementar na prática clínica, relacionando-o com o MoCA na EM. P300 visual: Em onze artigos, quatro demonstraram uma amplitude reduzida e uma latência aumentada deste PELL simultaneamente, isto é, em 36,4%. Separadamente, a amplitude verificou-se diminuída em 63,6% dos estudos e a latência prolongada em 54,4%. Um estudo relevou uma variação diferente – o aumento da amplitude. Neste artigo, o P300 visual foi obtido através de imagens de Kanizsa, ou seja, não foi usado o paradigma mais frequente. Artemiadis et al (2018) confirmaram a relação entre a BICAMS e o P300, inferindo a importância deste PELL como indicador da função cognitiva. Magnié et al (2007) sugeriram que as variações dos parâmetros deste PELL antecediam as demonstradas pelo P300 auditivo e que ambas se verificavam previamente às alterações nas escalas cognitivas. Para além disto, em Magnié et al (2007) é reforçada a importância de incluir este PELL no diagnóstico e no follow-up da disfunção cognitiva na EM, antes que esta seja demonstrada pelos testes neuropsicológicos. Finalmente, Piras et al (2003) demonstraram a relevância deste PELL numa perspetiva diferente – quando a incapacidade física impossibilita a avaliação da função cognitiva através de escalas cognitivas. N400: Este PELL foi avaliado por Amato et al (2016), revelando uma redução da amplitude e um aumento da latência, através de um paradigma específico – Stroop-Task – que Liotti et al (2000) considera consequência da atividade do córtex cingulado anterior. Milosevic et al (2012) sugeriu que o N400 poderá ser um método indicativo da memória semântica na EM. Uma vez que apenas um artigo mencionou este PELL, não é razoável assumir a sua aplicabilidade como método diagnóstico da disfunção cognitiva na EM. MMN: Jung et al (2006) não avaliaram a amplitude per si, mas sim, a sua área, argumentando que esta seria uma abordagem mais reproduzível. Este parâmetro demonstrou-se reduzido, tal como a sua latência. Jung et al (2006) sugeriram que estas variações – tal como as verificadas no P300 também avaliado neste estudo – poderão ser indicativas de um défice cognitivo subtil durante o período pré-clínico. Em Santos et al (2006) não se verificaram alterações estatisticamente significativas destes parâmetros. Neste estudo, os autores verificaram que este PELL estaria ausente em 40% dos doentes com EM durante o protocolo de variação da duração e em 45% no de variação da frequência. Santos et al avaliaram os doentes com o PASAT e concluíram que a disfunção cognitiva evidenciada por este teste neuropsicológico estaria relacionada com a ausência do MMN. Tendo em conta que este foi o PELL com resultados mais discrepantes na RSL e que apenas foi abordado em dois estudos, não é possível inferir a sua importância diagnóstica na disfunção cognitiva nesta doença específica. A nossa RSL poderá apresentar algumas limitações, nomeadamente, a menor amostra de doentes incluídos, considerando a prevalência mundial da EM, e os escassos dados de MMSE, MoCA e ADE obtidos dos estudos incluídos. Conclusão Os resultados obtidos nesta RSL sugerem que o P300 poderá ser um método diagnóstico apropriado para a disfunção cognitiva na EM, revelando esta manifestação clínica subtil previamente à sua deteção através de escalas cognitivas. Apesar do MMSE, do MoCA e do ACE serem os testes neuropsicológicos mais utilizados na prática clínica, poderão não ser os mais indicados para a avaliação precoce desta manifestação clínica. Os PELL poderão fornecer dados acerca da função cognitiva previamente às escalas cognitivas, o que, aplicado sistematicamente, poderá ter um impacto significativo na melhoria da qualidade de vida dos doentes com EM. Mais estudos comparando os doentes com EM com as escalas cognitivas mais usuais na prática clínica – MMSE, MoCA e ACE – e os PELL mencionados são necessários para implementar estas entidades neurofisiológicas de forma permanente na abordagem clínica à disfunção cognitiva na EM, e não apenas como ferramenta alternativa.
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Disfunção Cognitiva Esclerose Múltipla Potenciais Evocados de Longa Latência